A Venezuela na fronteira

Maduro obstina-se em dizer, à moda de Ceausescu, que nada falta ao povo e que o socialismo bolivariano não necessita de mendigar.

O colapso humanitário

1. Primeiro, as primeiras coisas. A Venezuela vive uma crise humanitária. Não há como a esconder. Largos milhões de pessoas sobrevivem no limiar da fome, estão desprovidos de qualquer serviço básico de saúde, expostos a altíssimos níveis violência. Já abandonaram o país 3,5 milhões de venezuelanos, dos quais um terço se refugiou na Colômbia, havendo regiões onde a situação se antolha dramática. É a maior deslocação de população na história das Américas. Ao contrário do que alardeia Maduro, não se cura aqui de propaganda americana ou europeia. Trata-se da dura realidade, aliás, conhecida dos portugueses, atenta a enorme comunidade lusa que vive – e hoje, com grande sofrimento, sobrevive – na Venezuela. A situação humanitária tem – e tem mesmo de ter – precedência sobre qualquer posicionamento político. É, de resto, essa a atitude de todas as organizações de apoio humanitário que pude encontrar no terreno, sejam ligadas à ONU, à Igreja ou a ONG. São rigorosamente neutrais e recusam qualquer conotação ou aproveitamento político. Gostariam de ter as portas abertas para actuar em território venezuelano, aí provendo às situações mais candentes e sustendo o fluxo de refugiados. Mas seja como for, recusam qualquer alinhamento político.

É incompreensível, até por isso, que Maduro, usando o controlo militar e para-militar que detém, impeça a entrada de ajuda humanitária. Se Maduro vê motivações políticas perversas em operações como a que foi ensaiada no fim-de-semana, podia, ele próprio, conduzir o processo de organização e distribuição dos programas em causa. Obstina-se, porém, em dizer, à moda de Ceausescu, que nada falta ao povo e que o socialismo bolivariano não necessita de mendigar. É óbvio que, diante de um estado de necessidade humanitário, Guaidó, poder legítimo e internacionalmente reconhecido, não pode deixar de fazer o que é absolutamente imperativo nem ficar com o labéu de que não o tentou fazer.

A nova tensão ideológica global

2. No plano político, tudo se afigura mais denso e complexo. O que está em causa na crise política e constitucional venezuelana é muito mais profundo do que o conflito entre democracia e ditadura que, em tantas partes do globo e em tantos momentos, pudemos testemunhar. Não é, aliás, por acaso ou acidente que Hugo Chávez se tornou um ícone global. O “chavismo” é a primeira expressão do populismo do século XXI; é um verdadeiro percursor do actual movimento populista que, sob signos de esquerda ou de direita, tem alastrado à escala global. Ele tem as suas raízes no velho populismo latino-americano (em especial, no justicialismo peronista) e nas “democracias populares” de raiz marxista (em particular, na experiência cubana). Simplificando, em traços grossos, o “socialismo bolivariano” é basicamente uma primeira incarnação daquilo que agora se conhece sob o eufemismo de “democracia iliberal” e que tem os seus grandes protagonistas actuais em Putin e Erdogan (logo, por sinal, dois intrépidos defensores do regime de Maduro). Chama-se “democracia”, porque à maneira de Rousseau, tem como único critério válido, a regra da maioria (e nisto se distingue dos regimes marxistas-leninistas). Apoda-se de “iliberal”, porque visa a eliminação progressiva da independência judicial e da liberdade de imprensa. Esse “iliberalismo” traduz-se ainda em políticas sociais assistencialistas, que reforçam o controlo do Estado ou de grupos oligárquicos e, por essa via, facilitam maiorias eleitorais sucessivas. 

É evidente que o consulado de Maduro já não é assimilável a uma “democracia iliberal”, antes consubstancia uma típica e terrível ditadura, assente no puro poder da força (militar e para-militar). A circunstância de a oposição ter podido vencer as últimas eleições legislativas de 2015 mostra que, até então, ainda estávamos perante uma “democracia iliberal”. De então para cá, a democracia iliberal culminou numa ditadura ignominiosa.

3. Esta qualificação – parecendo relevar apenas da filosofia ou da ciência política – mostra-se apta a explicar por que razão a crise venezuelana suscita esta enorme atenção global. Não se ignora naturalmente que nela se conjugam dimensões geopolíticas, geoeconómicas e históricas muito complexas. Mas no plano político ela representa o primeiro grande enfrentamento ideológico entre as “democracias liberais” e as “democracias iliberais”. Entra aquelas que assentam no voto maioritário com recusa dos limites próprios do primado do direito e aquelas em que o voto maioritário não pode pôr em causa os valores humanos fundamentais. Este corte ideológico marca fortemente o primeiro quartel do século XXI. Apesar do evidente desvio de Maduro relativamente ao legado de Chávez, o regime de Maduro personifica ainda a “democracia iliberal”, onde o voto maioritário está acima de todo e qualquer valor; enquanto que a oposição venezuelana (de López a Guaidó, passando por Capriles) encarna a “democracia liberal”, onde a vontade da maioria encontra limites no primado do direito. Esta é a luta ideológica dos nossos dias, que hoje, de resto, se alojou em plena União Europeia e não deixa de (paradoxalmente) se reflectir na América de Trump.

O desenvolvimento da crise política

 4. Até por causa deste significado político-ideológico de alcance global, importa evitar a todo o custo qualquer intervenção externa de natureza militar. Qualquer intervenção desse tipo seria um factor exponencial de agravamento da crise humanitária. Nesse domínio, a União Europeia e vários Estados do chamado Grupo de Lima podem ter um papel relevante de moderação de qualquer instinto mais impetuoso.

A moderação e eventual mediação, todavia, não pode nem deve dissolver-se numa posição frouxa ou frustre. É preciso não esquecer que Maduro tem ao seu serviço um grande número de milícias, constituídas por grupos armados de populares, verdadeiros “esquadrões da intimidação”, que fazem um uso indiscriminado da violência, da agressão e da morte. Quem esteve no terreno nestes dias, apercebeu-se claramente que eles são a guarda pretoriana do regime e os directos responsáveis pelas acções mais violentas, a roçar o arbitrário e o brutal. Têm ligação umbilical a Maduro (mesmo nos tempos de Chávez) e, em caso de “mudança de campo” das Forças Armadas, serão o bastião de resistência e de terror da oligarquia que hoje usurpa o poder.

Importa também olhar para Juan Guaidó. É um líder carismático, convicto, preparado, sereno, totalmente ciente da gravidade da hora que lhe coube em sorte. Terá agora um desafio de curto prazo que pode determinar o seu futuro. Regressa ou não a Caracas? Será preso ou mantém-se livre? É que outros jovens carismáticos da então oposição democrática venezuelana, como López ou Capriles, acabaram sempre mais ou menos neutralizados pelo regime. Eis o que a comunidade internacional, neste novo contexto, não pode permitir que aconteça. Pelo bem dos venezuelanos e dos nossos concidadãos. Mas também pelo bem da democracia global.

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