Estatísticas escondem atraso de meses nos incentivos às empresas

Último boletim informativo dos apoios da UE não permite perceber que há quem espere nove meses por uma decisão. Governo e IAPMEI culpam falta de pessoal.

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Rui Gaudêncio/Arquivo

Há empresas que estão nove meses à espera que o IAPMEI tome uma decisão sobre pedidos de reembolso ou pagamento de fundos comunitários. Esse atraso chega a ser de um ano ou mais, segundo uma das fontes consultadas pelo PÚBLICO, quando se trata de encerrar os projectos de investimento, fase que depende de auditorias. Governo e IAPMEI, que é uma das entidades pagadoras das verbas que Bruxelas atribui a Portugal, reconhecem que nem tudo é um mar de rosas e dizem que o número de candidaturas foi grande de mais para os recursos humanos disponíveis.

Segundo a lei, “o pagamento do incentivo é assegurado no prazo máximo de 45 dias úteis a contar da data de apresentação do pedido de pagamento” por parte da empresa (artigo 7.º do despacho 10172-A de 10/09/2015).

Porém, os próprios dados pedidos pelo PÚBLICO ao IAPMEI (Instituto de Apoio às Pequenas e Médias Empresas e à Inovação) mostram que o tempo médio de decisão em 2018 foi de 44 dias, nos pedidos intercalares, mais 13 dias úteis em média para o pagamento. Fazendo as contas, em vez dos 45 dias úteis previstos, o IAPMEI demorou em média 57 dias úteis a tramitar pedidos de pagamento, que podem ser por adiantamento ou por reembolso de despesas já feitas. Ou seja, em vez de dois meses, demorou em média dois meses e meio.

Dados oficiais merecem reservas

Mas estes prazos são valores médios, encarados com reservas pelo presidente da Associação de Consultores de Investimento e Inovação de Portugal (Aconsultiip). “São contas muito engraçadas. Há projectos muito simples de verificar, como os de internacionalização, que têm prazos mais baixos, e outros, como projectos de investigação (I&D) e desenvolvimento ou de inovação produtiva, onde os tempos são muito elevados”, salienta Victor Cardial, ao PÚBLICO. “Penso que a situação tem melhorado, mas a imagem cor-de-rosa que transparece dos relatórios e das estatísticas oficiais não corresponde à realidade”, prossegue, salientando que “até os próprios políticos correm o risco de serem enganados com os relatórios que dizem que está tudo bem, quando não está”.

Para os empresários, o problema está nos atrasos em projectos de inovação produtiva e de I&D. “Envolvem valores mais elevados, são investimentos onde qualquer atraso tem um impacto muito mais pesado nas tesourarias das empresas. Ao contrário dos projectos de internacionalização, que têm valores tipicamente mais baixos, os projectos naquelas áreas facilmente chegam a ser de meio milhão, um milhão ou dois milhões de euros”, anota Victor Cardial.

O mais recente relatório sobre a aplicação de fundos comunitários em Portugal, com os dados para todo o ano de 2018, foi divulgado a 10 de Fevereiro. Um domingo. Nesse documento (PDF aqui), vê-se que pouco mais de um terço (34,2%) dos 21 mil milhões de fundos europeus colocados a concurso são, exactamente, para ajudar projectos de competitividade e internacionalização. Só que, dos 7299 milhões de euros que os projectos aprovados representam, apenas um terço foi pago até agora. Dada a baixa execução – que não é exclusiva de Portugal –, a UE deu mais três anos aos países para executarem os projectos, visto que o quadro comunitário termina em 2020.

O medo dos empresários

No terreno, é difícil perceber a distância entre a realidade e as estatísticas oficiais. Em primeiro lugar, porque há milhares de empresas envolvidas e cada caso é um caso. Só no domínio da competitividade e internacionalização, 13.741 empresas tinham sido apoiadas até ao final de 2018.

Em segundo lugar, a arquitectura dos programas de apoio comunitário leva a que haja diferentes entidades pagadoras em Portugal. E cada entidade trabalha com regras, empresas e projectos diferentes. A Agência para o Desenvolvimento e Coesão, por exemplo, que paga os fundos da política de coesão, delegou essa função no IAPMEI e no Turismo de Portugal, bem como no Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, no caso de operações financiadas pelo Fundo Social Europeu. Esta agência, que tem também a responsabilidade de monitorizar a gestão e aplicação dos fundos, continua a pagar os apoios do restante universo de operações e, como disse ao PÚBLICO, apresentou tempos médios de pagamento que variaram entre 3,3 dias (em Fevereiro de 2018) e 6,5 dias em Dezembro, para um total de cerca de 19 mil pedidos de pagamento em todo o ano.

Em terceiro lugar, é difícil perceber a dimensão do problema porque há medo entre os próprios empresários que ficam meses à espera de decisões. Desde Dezembro de 2018, o PÚBLICO contactou (ou foi contactado por) cinco empresas que relataram ter situações “complicadas” e “incompreensíveis” de atrasos nas decisões do IAPMEI.

De entre os contactados, apenas um empresário aceita dar a cara. Os restantes pediram reserva da identidade, com o argumento de que receiam ser prejudicados pela administração pública que gere estes fundos.

O mesmo acontece com consultores que apoiam empresas nas candidaturas a incentivos. O PÚBLICO falou com três. Nenhuma aceitou ser nomeada para este levantamento. A razão: medo de retaliação. “Há muita gente com problemas, mas se uma pessoa se mete em bicos de pés sozinha, corre o risco de atrair uma imagem negativa. É natural que um empresário se pergunte sobre o que é que ganha se vier para a praça pública”, sublinha o presidente da Aconsultiip.

Um deles garantiu que esteve “meses à espera”, argumentando que a entidade pagadora pede documentos ou esclarecimentos adicionais, quando o prazo oficial está a expirar, o que prolonga o tempo de análise. O mesmo diz Victor Cardial, da Aconsultiip, que embora sublinhe não ter dados objectivos, referiu ter tido conhecimento de quem esperou nove meses. E que esse tempo de espera se prolonga para mais de um ano quando está em causa o fim do projecto. O IAPMEI, por seu lado, diz que o tempo médio de decisão no fim dos projectos foi de 158 dias úteis (o que dá mais de sete meses em tempo decorrido), anotando que os pagamentos finais, respeitantes aos últimos 5% de incentivo, dependem da auditoria final do projecto.

"Se soubesse, não tinha investido"

A excepção encontrada pelo PÚBLICO chama-se João Guedes, fundador da empresa Centro2S. A empresa entregou a 12 de Julho de 2018 um pedido de pagamento ao abrigo de incentivos aprovados. Recebeu a 31 de Dezembro, 119 dias úteis depois (2,6 vezes o prazo legal). “O que me choca, do ponto de vista operacional, é que não haja ninguém a olhar para isto”, disse ao PÚBLICO, a 3 de Dezembro de 2018.

“Fizemos um investimento que, se soubesse que isto iria acontecer, não teria sido feito”, afirmou João Guedes na altura. “Aceito dar o meu nome e a cara, ainda que tenha consciência de que essa decisão me expõe a eventuais retaliações e pode afectar-nos no futuro”, acrescentaria já na véspera da publicação deste trabalho. E porque dava a cara, ao contrário de outros? Porque a situação dos atrasos “é moralmente ofensiva e desgastante”. “No meu caso, não é uma situação de vida ou morte da empresa, mas a burocracia é tanta, o número de gestores no IAPMEI parece totalmente subdimensionado e isto torna impossível fazer qualquer trabalho em tempo útil”, tinha explicado em Dezembro.

A 17 de Janeiro de 2019, o PÚBLICO questionou o presidente do IAPMEI, Nuno Mangas – nomeado para o cargo em 2018, em regime de substituição –, sobre os atrasos. Aproveitando a presença deste dirigente numa cerimónia em Oliveira de Azeméis, o jornal pediu a Nuno Mangas que explicasse a origem dos atrasos. O presidente do IAPMEI – como aliás diria mais tarde o secretário de Estado da Economia, João Neves, ao PÚBLICO – invocou a escassez de meios face ao elevado número de candidaturas.

“Ninguém estava à espera de um volume de candidaturas, nomeadamente no âmbito da inovação produtiva, como aquele que houve neste primeiro período do Portugal 2020”, afirma este dirigente. “Se o IAPMEI tem uma estrutura que é idêntica, é natural que não se consiga dar uma resposta a todos dentro do prazo”, prosseguiu, salientando no entanto que está a ser feito um esforço para que, no Ministério da Economia, se abra a possibilidade de reforçar os quadros do IAPMEI. O IAPMEI tinha, em 2018, 397 funcionários, dos quais um terço (132) na Direcção de Investimento para a Inovação e Competitividade Empresarial, a maior daquela entidade, com 113 técnicos superiores que fazem precisamente a gestão, análises de pedido de incentivo e tramitação do processo até ao pagamento das candidaturas ao abrigo do programa operacional para a competitividade e internacionalização.

“É preciso termos o contexto. O IAPMEI tem um grande volume de projectos, de grande complexidade. A análise de uma candidatura não é sempre linear. Quando é assim, é muito difícil responder em tempo útil e é natural que haja alguns atrasos”, concluiu, anotando porém que “também há muitos projectos que correm normalmente, dentro dos prazos”.

Governo admite falhas e promete medidas

A mesma explicação foi apresentada pelo secretário de Estado da Economia, seis dias depois, quando, a 23 de Janeiro, foi questionado pelo PÚBLICO a propósito deste problema no final de um congresso que reuniu em Ílhavo centenas de empresários do sector automóvel, que também aproveitaram a presença de representantes do Governo para pedirem um “ambiente mais favorável ao investimento”.

“Evidentemente que nós queremos melhorar”, sublinhou João Neves. “Tivemos neste quadro de programação comunitária cerca do dobro dos projectos que tivemos no anterior”, prosseguiu. O problema é que isso aconteceu “num contexto em que as estruturas públicas têm dificuldade de adaptação do seu quadro de pessoal, porque essa é a realidade que nós temos”. “Mas estamos a tomar medidas no ministério da Economia para dotá-las dos meios e da capacidade de diminuir as dificuldades que tivemos neste período. Queremos incentivar o investimento”, garantiu.

A conclusão é a de que a estatísticas oficiais dos fundos comunitários não mostram as ineficiências da administração pública. Neste caso, resultam em atrasos, que não são de agora.

Em Maio de 2017, o PÚBLICO já noticiava que “há dezenas de projectos esquecidos nas gavetas do Portugal 2020”. Um ano mais tarde, em Julho de 2018, o semanário Expresso noticiava um atraso de 250% nos concursos do Portugal 2020. Em Novembro, foi o Jornal de Notícias a voltar à carga dizendo que havia “fundos europeus fechados na gaveta há cinco anos”, relatando a “incapacidade de resposta do sistema informático”, com impacto negativo sobre candidaturas tramitadas por outras instituições pagadoras. Em Dezembro, o Observador revelava a história de um empresário, sob anonimato, em que “os apoios se transformaram em pesadelos” devido aos atrasos.

Apesar das notícias, a solução tem tardado. E a polémica continua. A mais recente envolve os dados do boletim publicado no domingo, 10 de Fevereiro. O governo Costa diz que mostra que Portugal é um exemplo de aplicação de fundos. No que foi de imediato contrariado por Miguel Poiares Maduro, que tutelava esta pasta no Governo Passos. No início desta semana, a 18 de Janeiro, o antigo ministro do PSD disse que os fundos comunitários estão a ser usados “para ajudar os números do défice”, e que mais de 80% do investimento público é feito com recurso a fundos europeus.

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