Morte de fetos em hospital era “irreversível”, mas aborto no WC podia ter sido evitado

Grávida estava em trabalho de parto no Hospital de Setúbal, mas este não foi detectado. Mulher acreditava estar com fortes dores de cólicas e viria a expulsar um dos fetos na casa de banho. Entidade Reguladora da Saúde pediu às ordens dos Médicos e dos Enfermeiros para apreciarem o caso.

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Rui Gaudencio

A morte de dois fetos no Hospital de São Bernardo, em Setúbal, em Janeiro de 2018, era o “desfecho provável” independentemente da abordagem clínica feita à grávida de risco que por duas vezes foi à urgência queixando-se de dores fortes. Mas podia ter sido evitado que a mulher de 37 anos tivesse expulsado um dos fetos na casa de banho do hospital, enquanto aguardava os resultados de um exame. É o próprio hospital que o admite numa resposta à Entidade Reguladora da Saúde (ERS) que instaurou um processo para averiguar o caso e divulgou a sua deliberação (que data de Outubro) esta segunda-feira.

Grávida de gémeos, às 20 semanas, a mulher foi por duas vezes à urgência de obstetrícia do hospital integrado no Centro Hospitalar de Setúbal (CHS), no espaço de quatro dias entre o final de 2017 e o início de 2018. Cerca de duas horas após ter dado entrada na urgência pela segunda vez, enquanto esperava resultados de um exame à urina e pensando estar com fortes cólicas, a mulher expulsou um dos fetos sozinha na casa de banho. Alegou na queixa à ERS, em Janeiro de 2018, que “estava a ter contracções à frente de toda uma equipa de profissionais, que por incompetência ou negligência, não o conseguiram perceber”.

O perito médico ouvido pela ERS concluiu, tendo em conta os resultados da autópsia, que “o provável desfecho da situação seria similar, independentemente da abordagem clínica havida”. No entanto, entendeu que os sintomas descritos pela mulher na segunda vez que foi à urgência – “corrimento vaginal de cor transparente”, associado a cólicas que “continuavam a aumentar de intensidade, cada vez mais próximas umas das outras” – indiciavam já “uma situação de ruptura de bolsa de águas e trabalho de parto em início”. Na sua opinião, devia ter sido feita uma cardiotocografia para comprovar ou excluir essa hipótese. “Parece ter havido subavaliação da situação clínica.”

O hospital, em resposta à ERS, admite também que o exame clínico que a mulher estava a fazer “não foi completado de imediato”, porque a médica de urgência foi chamada para observar “outra doente já internada”. À grávida que viria a perder os fetos “faltava ainda observação com espéculo e toque vaginal, exames que permitiriam “seguramente, neste caso concreto, verificar que a utente estava em dilatação completa ou em período expulsivo, uma vez que expulsou um feto passado pouco tempo.”

A ERS concluiu que, embora se tratasse de uma gravidez de risco, dada a idade da mãe e o tipo de gravidez (gemelar monocoriónica – gémeos na mesma placenta), o CHS “não acautelou o devido acompanhamento da utente durante todo o período de permanência no SU [serviço de urgência], garantido uma permanente e efectiva monitorização da mesma, apta a garantir o cumprimento do dever de prestação de cuidados de saúde de qualidade e com segurança, que lhe era imposto.”

"Eram cólicas"

Quatro dias antes, na manhã do dia 29 de Dezembro de 2017, a utente deu entrada na urgência materna do mesmo hospital, queixando-se de “uma dor muito forte” e “permanente” junto das costelas, do lado direito, que sentia há uma semana. Não conseguia dormir, estar deitada ou sentada – era “como se a carne se estivesse a despegar dos ossos”, descreveu na queixa à ERS. Na manhã em que foi à urgência notou também que tinha “um corrimento vaginal de cor rosada, quase imperceptível”.

O médico que a observou fez análises à urina e ao sangue para avaliar a função hepática, uma vez que a grávida tinha iniciado há uma semana um tratamento da hipertensão que podia induzir alterações, segundo o relatório do processo de inquérito interno instaurado pelo CHS, que viria a ser arquivado. Confirmada a “ausência de critérios de gravidade”, foi-lhe dada alta às 11h, lê-se no relatório citado pela ERS.

O médico de urgência nesse dia disse à ERS que aconselhou a grávida a repousar e a ser seguida “a breve trecho com o obstetra”. O hospital não encontrou registo de consultas e desconhece se a utente foi a outro prestador. Até então esta era seguida numa consulta privada da especialidade.

“Nos dias que se seguiram”, a dor não aliviou. Continuava sem conseguir dormir, tendo voltado à urgência a 2 de Janeiro, por volta das 23h. A triagem de enfermagem registou “dor abdominal na zona púbica”, a referência às cólicas menstruais e corrimento líquido nesse dia. Não tinha febre e as tensões arteriais estavam normais. “Comecei a sentir umas cólicas intensas, cíclicas, que ora iam e vinham”, descreveu a mulher na queixa à ERS.

Foi vista pouco depois da meia-noite por uma médica que estava de urgência. O processo clínico faz referência às dores na zona púbica “tipo cólica” e obstipação. A ecografia fetal “revelou fetos com boa vitalidade” e a utente “ficou em vigilância com pedido de análises de urina”. Esta refere à ERS que a médica a tentou tranquilizar, fazendo relação entre as alegadas cólicas e prisão de ventre com excessos das festas de final de ano.

Antes e depois das análises, “as cólicas continuavam a aumentar de intensidade, cada vez mais próximas umas das outras”, relatou na queixa. “Mas eu estava tranquila. ‘Eram cólicas’, – tinha dito a médica. Nunca tinha sentido nada do género, mas também nunca tinha estado grávida.” As dores eram “aflitivas e insuportáveis”.

“Quando saí da sala da ecografia e voltei para a sala de espera do hospital, para aguardar pelo resultado das análises à urina, já ia determinada. Disse ao meu marido que se eram cólicas tinham que passar, tinham que aliviar.” Dirigiu-se à casa de banho do hospital, procurando “aliviar os gazes”. “Estava realmente aflita e, entretanto, ia pensando – ‘Estou a ficar mesmo uma piegas’. O que aconteceu naquela casa de banho nunca mais o vou esquecer. Expulsei uma das minhas bebés ali mesmo.”

Inquérito interno arquivado

O registo de enfermagem à 1h30 confirma esta versão. O segundo feto seria expulso na sala de partos, a utente internada e submetida a uma curtagem uterina, para retirar vestígios do aborto. A autópsia concluiu que insuficiência vascular foi a provável causa de morte. E o CHS arquivou o inquérito, “por não existir qualquer indício que demonstre que os profissionais afectos à equipa de ginecologia/obstetrícia tenham praticado quaisquer infracções disciplinares.”

O hospital, em resposta à ERS, explicou que a observação em falta, interrompida porque a médica teve que ir observar uma utente internada, “teria identificado a expulsão iminente e evitado que esta tivesse ocorrido na casa de banho com a utente sozinha”. “Analisados os registos de enfermagem e registos médicos, pela rapidez com que ocorreu a expulsão após a chegada ao Serviço de Urgência poderemos subentender que quando a utente chegou à urgência de obstetrícia, vinha já numa situação irreversível e que a expulsão era iminente”, acrescentou.

A utente, que teve alta no dia seguinte (4 de Janeiro), diz ter sabido depois que a perda das bebés era, naquele dia, inevitável. “O sofrimento ia acontecer nesse dia. Mas a forma como tudo aconteceu, o que senti e vivi naquele WC, isso podia ter sido evitado.”

Uma vez que as atribuições e competências da ERS “não se estendem à concreta actuação dos profissionais de saúde”, o regulador pediu na deliberação que o processo seja apreciado pelas ordens dos Médicos e dos Enfermeiros.

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