A hipocrisia com consequências de Paulo Rangel

Pena que para exigir a expulsão de Orbán não seja preciso apanhar o avião mas apenas dar meia dúzia de passos dentro do grupo parlamentar do PPE..

Nos últimos dias, o eurodeputado do PSD Paulo Rangel deslocou-se para a América do Sul e tem sido constante a dar-nos atualizações sobre se perdeu ou não o avião ou se já atravessou o Atlântico para acompanhar a situação na Venezuela. Muito bem. Ao observador menos atento poderia dar-se a ideia de que Paulo Rangel teria decidido nos últimos meses de mandato tornar-se assim numa espécie de Ana Gomes do PSD. Só que há uma diferença substancial: Ana Gomes está sempre disponível para denunciar com a mesma intensidade abusos cometidos por governos de adversários e aliados — como prova a forma enfática como tem atacado a corrupção e a conivência governamental com ela em países como Malta e Eslováquia, governados por socialistas. Já Paulo Rangel faz exatamente o contrário: usar as críticas justificáveis aos regimes de adversários que violam direitos humanos para relativizar comportamentos iguais de seus aliados. Pior ainda, essa é a artimanha que Rangel usa para esconder o facto de que lá onde poderia ter agido decisivamente para mudar as coisas — e lá onde as violações de direitos humanos são também violações das normas e valores da UE —, pouco fez, tarde fez, e nada de decisivo faz.

PCP e BE são criticados, com justificação, por serem ou terem sido ambíguos em relação ao percurso de demagogia, autoritarismo e populismo que se tem percorrido na Venezuela desde os tempos de Chávez até ao colapso da democracia venezuelana com Maduro. Com igual razão se pode criticar PS e CDS (sob um governo com o PSD) por terem fechado os olhos a essa deriva em nome dos negócios. Mas nenhum desses partidos partilha organizações partidárias, grupos parlamentares, candidatos e plataformas com Maduro ou Chávez. Ora, Rangel partilha tudo isso com Viktor Orbán da Hungria. O seu partido europeu é o partido de Viktor Orbán. O seu grupo parlamentar é o grupo parlamentar dos deputados de Viktor Orbán, a começar por Jószef Szájer, que é colega vice-presidente do PPE com Rangel, e foi o autor confessado das alterações constitucionais que iniciaram o desfazer do Estado de Direito na Hungria. O candidato de Paulo Rangel para presidente da Comissão Europeia é não só o mesmo que Viktor Orbán apoia, o político bávaro Manfred Weber, como esse candidato tem sido dentro do PPE o grande apoiante tácito de Orbán. E a tudo isto Paulo Rangel fecha os olhos ou critica apenas na medida do mais conveniente possível.

Se isto configurasse apenas uma situação de hipocrisia poderíamos talvez encolher os ombros, porque de hipocrisias está a política cheia. Mas esta é uma hipocrisia com consequências. Em primeiro lugar, porque a intensidade das denúncias de Paulo Rangel é inversamente proporcional à capacidade de intervenção e responsabilidade política que efetivamente tem, o que não deixa de ser curioso. Em segundo lugar, porque o que se passa na Hungria passa-se no mesmo espaço jurídico europeu em que estamos inseridos. A degradação do Estado de Direito na Hungria tem consequências diretas para nós e precedeu e contaminou tudo o que se tem passado na Polónia, na Roménia, na Eslováquia, em Malta e por aí adiante.

Só desde que Rangel se senta com o Fidesz de Orbán no Parlamento Europeu, a constituição húngara foi alterada dezenas de vezes, a lei eleitoral modificada para garantir maiorias constitucionais a Orbán, os tribunais foram decapitados, uma campanha de fundo anti-semita foi iniciada para criar um “inimigo interno” em George Soros, jornais e rádios foram encerrados, uma universidade foi forçada a sair do país, etc. Este último exemplo é particularmente importante porque Manfred Weber em tempos anunciou que essa seria a “linha vermelha” em relação à continuidade de Orbán dentro do PPE. A linha vermelha foi violada, e nada aconteceu.

Orbán continua no PPE e Paulo Rangel diz agora que prefere que ele saia pelo seu próprio pé, depois de anos a dizer que no PPE Orbán estaria mais controlado. Pelo meio, ele e Manfred Weber votaram pela abertura de um procedimento “artigo 7” (por violação de valores da UE) à Hungria porque não poderiam já continuar a negar que o caso húngaro o justificava — e sabendo que o Conselho Europeu não daria nenhum passo para o implementar, o que lhes permitiria lavar do assunto as mãos. Mas lá onde Rangel e Weber têm poder — expulsar Orbán do PPE — não fazem nada, o que não deixa de ser consistente com a atitude geral de ambos. Mais: segundo a próprio manifesto eleitoral do PPE, um voto em Rangel é um voto em Manfred Weber, tanto quanto o é um voto no partido de Orbán. O partido europeu é o mesmo, a plataforma eleitoral europeia é a mesma e os votos servirão para legitimar o mesmo candidato à presidência da comissão, que não por acaso tem sido um aliado constante de Orbán.

Perante estes factos, que são indesmentíveis, Rangel dá-nos palavras de circunstância e não atitudes. Pena que para exigir a expulsão de Orbán (como já fizeram outros deputados do PPE), ou para retirar a confiança a Weber caso este não tome a iniciativa de expulsar Orbán, ou para declarar que não ocupará a vice-presidência com um braço-direito de Orbán, não seja preciso apanhar o avião mas apenas dar meia dúzia de passos dentro do grupo parlamentar do PPE...

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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