A trapalhada e a oportunidade do Adamastor

O que define o carácter de uma cidade não é o espaço privado. É o seu espaço público. É por isso necessário criar formas de participação onde estejam habitantes e autoridades, partilhando aspirações e necessidades.

Passaram oito meses. E o caso da praça e miradouro de Santa Catarina, mais conhecido por Adamastor, na freguesia da Misericórdia, em Lisboa, continua sem resolução. Não é surpresa porque o assunto foi mal conduzido desde o início. Como escrevi na altura, qualquer actuação pública deveria ser cautelosa, olhando para os diferentes interesses envolvidos, fazendo-os participar em qualquer decisão a ser tomada.

Mas a insensibilidade foi total. Não se percebeu a complexidade do que estava em causa. Não se alcançou que existe um novo ciclo. Os cidadãos fartaram-se de ser alvo de mudanças, querendo participar nas decisões. E não se entendeu o capital simbólico do local enquanto espaço público interclassista e intercultural. O que está a debater-se já não é o miradouro. É o que Lisboa quer ser. Uma cidade idealizada por todos e para todos — sabendo que esse é um horizonte desejável embora não isento de tensões — ou para usufruto de acordo com o desejo estético e o dinheiro de alguns?

Na semana passada, na apresentação pública do plano de recuperação proposto (que contempla uma vedação com dois metros de altura), Fernando Medina penitenciou-se, dizendo que a sessão deveria ter sido realizada há meses e que não é fácil fazer face à complexidade de problemas que Lisboa enfrenta. Verdade. Fica-lhe bem a humildade. Mas, ao mesmo tempo, continua a instrumentalizar a vontade dos residentes.

Sou morador do bairro há vinte anos. Não duvido que uma maioria dos habitantes não se opõe a uma acção de disciplinação do miradouro, tendo em conta a sobrecarga humana a que o mesmo tem sido sujeito, com repercussões ao nível do ruído, pequena criminalidade e higiene. Mas quanto ao que fazer é evidente que existem diferentes sensibilidades.

Estes oito meses são a prova de que a vedação não resolve nada. Ela está lá e o pequeno tráfico de droga manteve-se, deslocando-se apenas para onde agora circula o maior número de pessoas. A praça pública vai sendo cada vez mais ocupada pelo hotel de luxo contíguo. E durante a noite, o local, por ser menos frequentado, amplifica a sensação de insegurança.

Quanto ao ruído vale a pena atentar na demagogia. A mesma câmara que evoca o direito ao sossego quando quer justificar a sua actuação, liberaliza a actividade de rooftops em zona habitacional e discotecas ao ar livre, como o Lust in Rio, que, pasme-se, funcionam toda a noite com música em altos berros, a céu aberto, até às sete da manhã, impedindo quem vive na colina do bairro ao sossego, apesar de abaixo-assinados dos moradores.

E aqui voltamos ao início. Há demasiados casos a acontecer para que o alerta não seja accionado. O Adamastor, ou o Martim Moniz, são apenas a ponta do icebergue. É urgente mudar de rumo. Alguns sinais já foram dados, mas exige-se mais. Apesar de as posições se terem extremado, talvez exista aqui uma janela de oportunidade. Mas para isso acontecer quem detém o poder tem de estar pronto para o repartir, tendo uma relação mais horizontal com os cidadãos. Por sua vez, estes têm a responsabilidade de estar preparados para intervir. E para isso acontecer são necessários mediadores e canais de informação eficientes e transparentes, para que não se gere um diálogo de surdos.

O que define o carácter de uma cidade não é o espaço privado. É o seu espaço público. É por isso necessário criar formas de participação onde estejam habitantes e autoridades, partilhando aspirações e necessidades. O que as últimas movimentações têm mostrado é que é indispensável a participação cívica na gestão da cidade de Lisboa. Ainda iremos a tempo?

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