A gata de Craonne

Nas ruínas de uma aldeia francesa que a guerra devastou até às fundações, a ausência dos habitantes sulca a paisagem e o relevo como uma cicatriz. Na encosta, mais abaixo, os poucos que regressaram a casa depois da hecatombe construíram uma nova Ítaca. Segunda de uma série de crónicas sobre a Guerra das Guerras, a partir de um dos seus principais palcos, França.

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Desço do planalto de Californie com a Francisca e a Cecília, atravessamos a estrada e regressamos ao bosque que foi outrora a aldeia de Craonne, de onde partimos há uma hora. Até 1914, a aldeia erguia-se no ponto onde a encosta começa. A guerra destruiu a povoação, primeiro aos poucos, alvejando uma casa aqui, outra além, para depois arrasar tudo numa hecatombe, até não ficar pedra sobre pedra.

Percorremos os carreiros que serpenteiam entre os enormes buracos de obus, entre as árvores novas da floresta aqui plantada a lanço quando a mortandade acabou. Carreiros que nada têm que ver com as ruas originais da aldeia, para sempre sepultadas debaixo desta terra. Dispersos pelo bosque há montículos de tijolos e pedras forrados de verdura, é tudo o que resta das casas, dos muros. Há placas explicativas, que a geada hoje quase não deixa ler, a assinalar onde em tempos ficava a igreja, a mairie, as ruas principais.

Estampado numa das placas há um postal ilustrado com uma imagem da aldeia em 1908. Gente parada diante de casas bonitas de dois andares, com cantaria e madeiras trabalhadas. Uma arcada. Um garoto sentado num degrau, muito direito, em frente à porta de um café. Dois homens a segurar bicicletas. Uma carroça. Uma pessoa à janela de um primeiro andar. Duas mulheres paradas na berma do passeio, com vestidos até aos pés e aventais brancos, ambas com as mãos recatadamente entrelaçadas diante da cintura. Todos olham o fotógrafo. No selo de correio de cinco cêntimos colado no canto superior direito do postal, a República, de barrete frígio, prepara-se para lançar à terra mais um punhado de sementes que tirou do saco que traz a tiracolo.

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Há 13 pessoas na fotografia, oito são homens adultos. É difícil distinguir os rostos, o gelo vela a imagem, já de si pouco nítida, mas a aparência de alguns deles sugere que, seis anos depois de a fotografia ter sido tirada, quando a guerra rebentou, teriam ainda idade para ser incorporados no exército. O rapazito sentado no degrau devia ter uns oito ou nove anos, não mais. Talvez tenha escapado aos campos de batalha. A República no selo, também ela de contornos esbatidos, parece-me agora, vendo bem, um espectro a semear a morte às mãos-cheias sobre a cabeça desta gente.

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A Inês tinha descido à frente com a Alexandra, para se refugiarem no carro, tal o frio. Eu e as gémeas vemo-la agora a correr ao nosso encontro. Ao lado dela, como se fosse um bicho amestrado, vem a saltitar um gato branco e preto.

Quando perguntei a Noël Genteur quem é que, depois de assinado o Armistício, tomou a decisão de não reconstruir a aldeia no mesmo lugar, ele disse-me que Craonne se converteu na aldeia-símbolo dos motins de Maio de 1917, da revolta contra a guerra, dos fuzilados, em grande medida graças à mítica Canção de Craonne, que, entre outras coisas subversivas, contém aquele verso, sacrílego no momento em que soam os canhões, em que se diz que “os soldados vão todos entrar em greve”. Disse-me que um motim, na verdadeira acepção da palavra, acontece quando as tropas assassinam os chefes, os oficiais, mas que nenhum oficial foi assassinado em 1917. Disse-me que o poder político, a hierarquia militar e a comunicação social da época aproveitaram para deitar as culpas do fracasso medonho da ofensiva do Chemin des Dames para cima dos ombros dos soldados, dos amotinados. Para cima dos ombros do povo. E que a aldeia, portanto, estava proibida de renascer das cinzas. Ninguém se atreveu a dizê-lo às claras, mas havia quem desejasse que a Canção de Craonne passasse a ser a canção de um lugar riscado do mapa, a canção de lugar nenhum. “Propuseram aos habitantes”, disse-me Noël Genteur, “que fossem construir uma nova aldeia a 50 quilómetros daqui”.

Ernst Jünger fala de um grande gato coxo de pêlo branco, com uma pata dianteira decepada por uma bala, que os soldados viam muitas vezes nas imediações de uma aldeia do Pas-de-Calais, qual espectro, a deambular pela terra-de-ninguém, e que parecia ter sido adoptado pelos combatentes dos dois lados. Um enviado felino, ocorreu-me ao ler essa página de Jünger, com a missão de aliviar o tormento dos homens nas trincheiras, fazendo-os sentir que nem toda a humanidade estiolara dentro deles. É claro que sermos ternos para os animais nada garante quanto a sermos ternos para os outros homens. Paulo Varela Gomes escreveu que “todos conhecemos pessoas que não gostam de seres humanos mas gostam de animais”. Só que, na frase seguinte, ele completou a ideia: “Mas não há ninguém que, sendo cruel para os animais, possa gostar verdadeiramente de pessoas.”

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A missão do gato que agora acompanha a Inês, no entanto, é outra, mais apropriada a esta nossa época de paz. Está aqui para trazer alegria a este lugar tão triste. Para assinalar a força da vida num lugar tão marcado pela morte. Vem mostrar-nos que o luto se faz de muitas maneiras, que o luto também se faz vivendo, brincando, afirmando a vontade de continuar, de não ceder. Com o ar mais natural do mundo, o gato afasta-se dois passos para o lado, escava com as patas da frente e faz cocó, depois tapa a sua porcaria o melhor que consegue, embora a terra dura e fria lhe dificulte a tarefa, e em seguida, sem cerimónia nenhuma, vendo-me acocorado, a tirar fotografias à paisagem, salta-me para os joelhos, deixando-me nas calças pegadas muito perfeitas de lama e de caca. Passo-lhe a mão pelo dorso, que ele arqueia, de rabo alçado, olho-lhe para o traseiro. Afinal não é um gato, é uma gata.

Moravam 600 pessoas em Craonne antes da guerra. Mal a guerra acabou, houve quem regressasse, houve cartas trocadas com os outros exilados da aldeia, dispersos por toda a França. “Vale a pena voltar?”, perguntavam estes. E os primeiros a regressar respondiam: “Não, não vale a pena. Está tudo destruído.” De 600 habitantes, regressaram 35. Noël Genteur repetiu-me várias vezes: “De 600 pessoas passámos para 35.” Entre estes 35, contavam-se os bisavós e o avô de Noël Genteur. Um tio-avô, morto em combate logo no início da guerra, em 1914, não pôde regressar.

A gata é terna, brincalhona. Afia as unhas num cepo escuro, quase negro, que é tudo o que resta de uma das antigas árvores de Craonne. Roça-se contra um arbusto, mordisca-o, deixa-se enredar nos ramos baixos, revira os olhos, finge-se enfurecida, a espreitar-nos pelo canto do olho, para se certificar de que não nos alheámos dela. Senta-se num dos bancos de jardim que aqui há, muito direita, a olhar ao longe, como que a fazer pose para as fotografias. Quando nos afastamos, deixa que percorramos uns bons 30 metros, fingindo-se distraída, antes de se lançar a correr pela encosta abaixo, no nosso encalço, com sofreguidão de perdigueiro. Ultrapassa-nos aos saltos, empoleira-se numa placa de sinalização, imobiliza-se, esfíngica, torna a vestir a sua pele de gata. “Será vadia? Terá dono?”, perguntamos uns aos outros. É tão meiga, deve ter dono. Mas tem o focinho sulcado por um ziguezague de cicatrizes, e descubro-lhe uma grande pelada na base da cauda. As opiniões dividem-se.

Barbusse, que combateu na Grande Guerra e escreveu um livro sublime sobre o que viu e sentiu, põe em cena um soldado chamado Poterloo. Quando, por mero acaso, a unidade a que ele pertence é colocada a dois passos da sua aldeia natal, agora situada em plena zona de combate, Poterloo desafia o narrador a acompanhá-lo numa romagem de saudade. Abandonam a trincheira e, a coberto do nevoeiro, por entre as explosões de obuses que tombam às cegas, vão os dois até ao ponto onde ficava a aldeia, e Poterloo, pura e simplesmente, não consegue reconhecer a topografia do lugar onde nasceu e cresceu. Não há ruas, não há casas, há apenas um imenso monturo pantanoso, como se, anos a fio, aquela planície tivesse servido de lixeira e de depósito de entulho. O regato da azenha corre sem rumo pela paisagem, desviado do seu leito, até desaguar num lago de água estagnada, nos escombros da praceta onde dantes se erguia o cruzeiro. Poterloo só muito a custo identifica os vestígios da casa onde sempre vivera e acaba por dizer: “Está quase apagada, a minha vida de outrora. Tenho medo ao vê-la assim, tão apagada.” Foi isto que sentiram, talvez, os 35 que regressaram a Craonne e também as centenas que, ao saberem o que ali os esperava, preferiram não regressar. Sentiram que a sua vida de outrora fora apagada e tiveram medo.

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Voltamos para o carro, para merendarmos com a comida que comprámos de manhã no hipermercado, em Reims. A gata passeia-se por cima do pára-brisas, cobrindo-o com delicadas pegadas de lama. Saio do carro, levando comigo a embalagem de húmus, verto um montículo de húmus na berma do asfalto. A gata põe-se a lambê-lo. Ouço um carro a vir pela estrada acima, vejo-o aparecer na curva, depois abrandar e parar, vejo o brilho intermitente do pisca-pisca esquerdo. A gata está no caminho do carro, o erro foi meu, não devia ter posto aqui a comida, curvo-me e agarro-a por baixo do peito. Ela debate-se, tenta fugir-me, mas sem me assoprar, sem me arranhar. Acabo por tomá-la nos braços, o carro avança então, sai da estrada de asfalto e pára ao lado do nosso, no carreiro de terra batida. O condutor desliga o automóvel, abre a porta e vem ao meu encontro, desdobra um mapa e faz-me uma pergunta. A gata vai a correr meter-se debaixo do carro que acaba de chegar. Ao vê-la desaparecer nas entranhas do motor quente, digo a mim mesmo que ela é, seguramente, vadia. O turista repete a pergunta, de mapa aberto sobre o capot do carro. Não lhe sei responder.

Vi o documentário de Paulo Abreu sobre um grupo de deportados a viver nos Açores. Homens e mulheres que nasceram no arquipélago e que, ainda crianças ou até bebés, acompanharam os pais na emigração para os Estados Unidos ou para o Canadá. Agora adultos, foram deportados para os Açores depois de cumprirem pena por pequenos crimes e vêem-se impedidos de regressar à terra onde estão todas as suas memórias e referências, ao país a que chamam “pátria”, onde alguns deles deixaram os filhos bebés. Ninguém lhes dá trabalho, são párias naquelas ilhas, para eles terra estrangeira. Passam os dias a olhar o oceano. Vemo-los em Lisboa, sentados num autocarro turístico. Avistam o Starbucks, nos Restauradores, e ficam fascinados, orgulhosos, quase emocionados, por lhes recordar a terra americana. A narrativa homérica da Odisseia apaixona-nos por ser a história de um regresso a casa, protelado uma e outra vez por incidentes vários, pelos caprichos do destino e pela má vontade dos deuses, pelas seduções a que Ulisses cede, mas sempre possível, sempre em aberto, uma caminhada ao encontro de um objecto que se perfila no horizonte, uma meta que dá sentido à existência do herói e que o faz avançar. Os deportados nos Açores são como Ulisses proibidos de regressar a Ítaca, condenados a vaguear sem rumo. Uma punição brutal pelos pequenos crimes que cometeram. Mas que crime cometeram os exilados de Craonne? Esses eram Ulisses forçados a deambular sem rumo, não por os terem proibido de regressar à sua Ítaca, mas porque a sua Ítaca, pura e simplesmente, deixara de existir. Ou antes, existia ainda um lugar que se poderia apontar e dizer: “Aqui era Ítaca.” Porém, se eles o vissem, não seriam capazes de o reconhecer. Dir-me-ão que a comparação é espúria, que Ulisses abandonou o lar de sua livre vontade, partiu para a guerra porque assim o quis. Não é verdade. Ulisses não queria partir, não queria pegar em armas, fingiu-se louco para não participar na loucura colectiva. Foi só quando pousaram o bebé Telémaco à frente da lâmina do arado que ele se viu obrigado a vergar-se aos ditames da maioria desvairada.

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Louis Barthas, um tanoeiro que escreveu as suas preciosas memórias da Grande Guerra em cadernos escolares, conta como, no dia 2 de Agosto de 1914, as autoridades anunciaram na sua aldeia da Occitânia a mobilização geral, prelúdio da guerra, “a guerra maldita, infame, desonrosa para o nosso século, afrontosa para a nossa civilização, de que tanto nos orgulhávamos”. E prossegue: “Este anúncio, para meu grande espanto, suscitou mais entusiasmo do que consternação.” Talvez tenha sido este o delito dos exilados de Craonne, dos homens de todas as aldeias e cidades de França, da Europa: a embriaguez de Agosto de 1914. Não terem visto a morte a erguer o braço acima das suas cabeças, pronta a semear uma destruição nunca vista. Mas que castigo brutal sofreram, para punir um delito afinal tão humano, tão desculpável.

O turista mete-se no carro, faz menção de arrancar. Digo-lhe: “Olhe que o gato está dentro do seu motor.” E a mulher dele, pelo vidro aberto: “Esse gato já está a incomodar.” O motor ronca, a gata reaparece logo, muito desenvolta, põe-se a lamber as patas como se não fosse nada com ela. Sinto-me tentado a pegar nela, a metê-la no carro, a levá-la connosco para o hotel, depois para Portugal. Chego a dizer às minhas filhas: “Esta gata é que dava uma boa companheira para o nosso Fidel.” Mas logo acrescento, antes que a esperança delas tome forma: “Não dá, é impossível, não a podemos levar.” Hesito, pondero os prós e contras de a levar connosco. Penso na burocracia, nas chatices, no dinheiro. Sempre o dinheiro. Será preciso comprar uma caixa para transporte de gatos. Será preciso pagar um valor adicional no Ibis de Reims e um bilhete a mais no avião. Será talvez preciso ir a um veterinário, arranjar um boletim de vacinas. Será preciso comprar uma coleira e uma trela, para levar a gata a fazer chichi e cocó no parque de estacionamento do hotel. Ainda faltam quatro dias para o regresso a Portugal. O Ibis é numa ilha de asfalto cercada de vias rápidas, no subúrbio da cidade, ao lado de um Burger King, de um gigantesco restaurante asiático e de um enorme recinto de diversões coberto para festas infantis. E se a gata se assustar, se soltar da coleira e fugir? Esta imagem horroriza-me. Nunca conseguirá encontrar o caminho de regresso a Craonne, morrerá atropelada numa das oito faixas paralelas de uma das vias de cintura da cidade. É certo que vimos coelhos a saltitar nos relvados pouco viçosos do parque de estacionamento do Ibis, fugiram sem grande pressa quando as luzes do carro os banharam. Mas esses são diferentes, estão afeitos ao trânsito, à vida suburbana.

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Os 35 que regressaram a Craonne resistiram aos esforços das autoridades para os obrigar a baixar os braços. “Conheci bem o meu avô e a minha avó, que me contaram como foi”, disse-me Noël Genteur. Durante dois ou três anos, houve pressões tremendas. Os regressados instalaram-se como puderam nas trincheiras abandonadas, nos abrigos dos soldados, comeram o pão que o diabo amassou, lavraram as terras devastadas e coalhadas de arame farpado sem ajuda de ninguém, com sacrifícios inimagináveis, passaram fome, tiveram medo. “Ao fim desse tempo, vendo que aquelas pessoas não partiam, não desistiam, as autoridades construíram casas provisórias para as albergar e deram o braço a torcer. Permitiram que uma nova Craonne fosse erguida.” A nova aldeia, um pouco abaixo do lugar onde estamos, foi construída na antiga terra-de-ninguém, por onde gatos mancos como o de Jünger talvez tenham deambulado entre as trincheiras francesas e alemãs, adoptados pelos combatentes dos dois campos, lembrando aos soldados a sua condição humana.

Dizemos adeus à gata, metemo-nos no carro, ligo o motor, arranco. Peço à Inês que olhe pelo vidro traseiro. “A gata vem a correr atrás de nós?” Prometo a mim mesmo que, se assim for, vou parar o carro, vou abrir a porta, deixo a gata entrar, levo-a connosco e seja o que Deus quiser. A Inês volta-se no assento e diz-me que a gata se meteu na floresta, que já não a vê. Meia hora depois, já de noite, estamos em Reims, entramos no hipermercado para comprar o jantar. Chegamos à caixa, a empregada, nova e bonita, ouve-nos falar uma língua estranha, pergunta-nos de onde somos. “De Portugal. Mas não moramos cá, estamos só de visita.” Ela diz: “Eu sou da Bielorrússia.” Pergunto-lhe como estão as coisas por lá, ela responde: “Muita pobreza, pouco trabalho.”

Há pessoas na fila, impacientes, mas pergunto-lhe ainda, como quem procura um raio de luz: “Um dia vai voltar para a sua casa, não vai?” Ela ergue a mão esquerda, abre os dedos, aponta para a aliança com o indicador direito. “E isto? O que faço a isto?” E sorri. O hipermercado, situado na sua ilha de asfalto rodeada de vias rápidas, a curta distância do nosso Ibis, é monumental, tem nas prateleiras todos os produtos imagináveis. Na secção dos animais de estimação há coleiras e trelas para todos os gostos, caixas de transporte de animais de todos os formatos e materiais possíveis. Percebo, tarde de mais, que devíamos ter trazido connosco a gata de Craonne.

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