Associação, sindicato, liberdade total: que futuro para os artistas de rua?

No Porto, estão lançadas as bases para a criação de uma associação de artistas de rua. Em Lisboa, fala-se de um sindicato. Mas há quem defenda que regular o sector é contrariar a sua filosofia. Para onde caminham as artes de rua?

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Daniel Rocha

O corpo de Francesco Cerutti ainda crescia e já ele fazia das ruas um palco. Em Itália, onde nasceu, começou a fazer espectáculos ligados ao circo aos 14 anos e a fascinar-se pela arte de rua pouco depois. A liberdade teve efeito magnético e Francesco foi viajando pela Europa, improvisando palcos, reconhecendo a beleza de actuar debaixo de céu. Assim conheceu Portugal, há pouco mais de uma década. E notou no país “uma lacuna” no que a artes de rua dizia respeito.

No Verão passado, juntou no Porto 25 artistas de rua, nacionais e internacionais, com 60 espectáculos na baixa da cidade. Clown, estátuas-vivas, magia, comédia, acrobacia, música. A experiência foi inspiradora e ajudou Francesco Cerutti a delinear aquilo que agora será a Porto Buskers, uma associação cultural que pretende contribuir para a organização do sector, com base no Porto mas os olhos postos no país. A experiência diz-lhe que planear e ter regras só traz boas novas. Mas a filosofia não é consensual.

Uma petição pública com cerca de 90 subscritores faz o contra-ataque e deixa preto no branco a rejeição de qualquer associação que “possa decidir quem, onde e como actua no espaço público”. Fazendo referência à pretensão de criação de uma estrutura em Lisboa, a petição — cujos criadores estiveram indisponíveis para falar com o PÚBLICO, não respondendo aos pedidos de entrevista enviados via email ao longo das últimas semanas — recusa “mediadores culturais” e reforça o desejo de ver os artistas de rua permanecerem “livres, independentes e autónomos”. Mas não são contra a existência de regras. Os subscritores defendem “licenças de trabalho acessíveis e a um preço simbólico, emitidas directamente pela câmara a todos os artistas de rua sem excepção”. 

“Palco aberto”

É uma manhã fria de Janeiro, com o Sol de Inverno a aquecer quem caminha pela Rua Augusta, em Lisboa, em direcção ao rio. Nessa viagem, segue-se embalado pelo som aveludado do violoncelo que Mariana toca. É assim há seis meses desde que começou a tocar na rua. Primeiro por “curiosidade”, depois, “é claro”, pelo dinheiro que vai juntando. E começou a tomar-lhe o gosto. “Gosto de ver a reacção das pessoas e de sentir que estou a contribuir de alguma maneira para melhorar o dia delas”, diz. Nem que seja só por uns segundos. 

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O italiano Francesco Cerutti está em Portugal há mais de dez anos e criou uma associação de artistas de rua Nelson Garrido

Mariana Filipe, 28 anos, chegou a Lisboa há três anos à procura de “aventura”. É de Águeda, perto de Aveiro, e começou a estudar música aos nove anos. Acabou por gostar tanto que quis conhecer sempre mais deste mundo. Fez a licenciatura em Música, depois um mestrado. Quando chegou à capital, começou a dar aulas de música e depois foi para as ruas tocar.

“Sempre fui um pouco mais fechada, mais tímida, então quando comecei custou um bocadinho porque estou exposta”, diz, enquanto calça as luvas tentando fintar o frio que, por vezes, a desmotiva um pouco. 

Agora, diz que se ouve bastante melhor. “Como estou a ser ouvida sou muito mais exigente”. “É um enorme desafio porque eu estou bastante exposta e isso obriga-me a ter uma nova percepção da minha maneira de tocar. Uma coisa é quando estás em casa a estudar, outra é estares cá fora, exposta na rua e não sabes quem está a passar”, partilha.

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Mariana tem 28 anos e começou a tocar nas ruas há uns meses para testar a sua música Daniel Rocha

No Porto, a música ecoa na Rua de Santa Catarina. Sentada num banquinho azul, Patrícia Pereira toca a sua belíssima concertina italiana. Há 15 anos, em Coimbra, aceitou o desafio de um amigo: e se em vez de tocar tantas horas em casa, o fizesse na rua? Depois de vencer a vergonha de uma primeira experiência, nunca mais voltou atrás. Desistiu do curso de Psicologia, no 4º ano, pela certeza de o futuro ser musical. Tem cd publicados, faz concertos, actua em casamentos. Passa recibos verdes e desconta para a Segurança Social. Mas diz não haver nada como o “palco aberto” da rua.

Mas em ruas cheias de músicos, estátuas, pintores, como é que cada um conquista o seu lugar? No Porto, não há licenças para estes artistas. Mas existe uma espécie de código de conduta informal para quem actua nas artérias da cidade. Se um músico ocupa uma zona, quem chega deve criar uma distância de respeito, para não interferir com o espectáculo. Estar mais de duas horas no mesmo espaço é desaconselhável e, quando a cena é mais ruidosa, promover momentos de pausa é importante. Até às montras devem guardar-se alguns metros de intervalo, para os clientes poderem circular livremente e não criar atrito com os comerciantes. 

Em Lisboa, a emissão dessas licenças compete às juntas de freguesia, desde 2015, quando a câmara passou essa competência para essas estruturas e eliminou a taxa para o licenciamento dos artistas de rua que custava 392,20 euros. Em resposta a questões do PÚBLICO, a Junta de Freguesia de Santa Maria Maior diz que as licenças de ocupação de espaço público para animação de rua “têm sido constantes ao longo dos anos”, e que os requerentes têm vindo a fazer renovações semestrais das mesmas e são, em muitos casos, licenças já anteriormente emitidas pela autarquia. 

Neste momento, nesta freguesia do centro histórico de Lisboa onde se concentram grande parte dos artistas que se vêem nas ruas, estão em vigor 16 licenças — dez para actividade musical e seis para estátuas humanas. Existem ainda 11 licenças atribuídas para produção e venda de produtos de artesanato, pintura e fotografia. As licenças de animação de rua estão isentas do pagamento de taxa administrativa, mas estão sujeitas ao pagamento de uma taxa de ocupação de espaço público mensal, que custa 12 euros por metro quadrado. 

Quanto a queixas em relação aos artistas de rua, a junta diz que são “muito pontuais” e que tem sido dada “pronta resposta” a esses problemas. 

Mariana Filipe diz que nunca teve problemas nem com comerciantes, nem com a polícia. “Como eu não tenho um amplificador, o meu som acaba por não perturbar muito”. Apesar da ausência de regras “formais”, diz que, entre os artistas, se entendem “bastante bem”.

“Há respeito mútuo e é uma questão de gerir o tempo. Normalmente se vejo uma pessoa a tocar num sítio onde eu costumo estar vou lá perguntar quanto tempo é que ele vai lá ficar. No outro dia aconteceu uma coisa engraçada. Estava aqui um rapaz que costuma tocar com uns baldes. Ele viu-me a chegar e disse ‘ah, vou só tocar mais uma bocadinho e já saio porque sei que tu gostas de tocar aqui e eu posso ir para outro sítio’. Acho isso incrível”. 

Em 15 anos de música nas ruas, Patrícia Pereira também nunca teve problemas de maior. Mas tem sempre presente o equilíbrio frugal daquele palco: “É preciso um braço de ferro e outro de veludo”, diz. Aos 17 anos, actuar na rua era um sobressalto. De cada vez que alguém fazia um comentário agressivo, Patrícia metia-se em casa, “chorava por duas semanas”. Depois, foi aprendendo a driblar a angústia, a manter a compostura. Em mente, sublinha em jeito de conselho, é preciso ter sempre presente a dignidade do que se está a fazer: “Estou a trabalhar, não a pedir.” 

A ideia contrária é percepção comum nas ruas. Quem o diz é Pedro Leal, músico que actua a céu aberto, em dupla com Jacinto Perez. “Muitos vêem na arte de rua uma forma de mendigar”, lamenta. “Falta organização por parte da Câmara do Porto, actuámos sem legislação do Estado nem qualquer controlo.” Em três anos, a polícia pediu-lhe para parar por três vezes. E Pedro Leal até compreende. “O que faço é ruidoso e percebo que possa gerar conflitos”, admite. Como bálsamo para eles, uma moldura legal seria uma boa aposta. “Subscreveria um modelo que regulasse o sector de alguma forma. Para mim faz sentido pagar algo para estar na rua.” 

Mariana Filipe também acredita que poderia haver “algo mais organizado” em Lisboa. Mas com alguma contenção: não poderiam ser normas que retirasse “a liberdade” aos artistas de rua, que lhes permitisse actuar em várias zonas da cidade e não cingir-se apenas a um local. 

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Daniel Rocha

Uma Covent Garden à portuguesa

Francesco Cerutti levou à empresa municipal Porto Lazer uma proposta de regulamentação do espaço público. A conversa estará ainda em modo embrionário — e a Câmara do Porto não quis dar mais pormenores sobre o tema, não respondendo às perguntas do PÚBLICO sobre o tema —, mas o italiano está convencido de que estão criadas as bases para a mudança. “Talvez não em breve e não este ano”, começa. Mas o passo inicial está dado. E a aposta poderá ser, por exemplo, “um espaço definido na Ribeira”.

Quando chegou ao Porto, Francesco foi alimentando a ideia de criar um festival de artes de rua para preencher a falta destes espectáculos na cidade. Depois de uma primeira edição de sucesso, diz, continua a notar alguma “falta de atenção” em relação ao sector. Mas um enorme potencial também. A Porto Buskers, escreveu na descrição da associação, “propõe-se abordar e resolver problemas artísticos, organizacionais e culturais relacionados com o desenvolvimento do busking [actuação performativa em espaços públicos] na cidade”. 

Em Itália, onde Cerutti nasceu, “o movimento” está uns passos largos à frente, porque “começou muito antes”. E ter visto a história desenvolver-se no seu país dá-lhe autoridade para antever a narrativa por cá. Regular o sector é correr o risco de aniquilar o espírito das artes de rua? Francesco entende o raciocínio. Mas contrapõe com o exemplo prático de Covent Garden, em Londres, “onde as dinâmicas de rua não fizeram outra coisa que não impulsionar uma arte e revitalizar uma área da cidade”.

A Porto Buskers quer ajudar a regularizar o sector das artes de rua Nelson Garrido
A Ribeira poderá ser um palco certo para os artistas de rua, defende Francesco Nelson Garrido
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A Porto Buskers quer ajudar a regularizar o sector das artes de rua Nelson Garrido

Esta praça de Londres é um dos sítios preferidos de Daniel, um palhaço acrobata desencantado com Portugal, para actuar na rua. Os artistas conseguem mostrar-se a um público de 400 a 500 cidadãos e turistas. “À tua volta, tens pessoas nas esplanadas dos cafés e é um abuso a quantidade de pessoas que estão a olhar para ti naquele momento”, diz.

A vida de Daniel Gonçalves, 35 anos, dava um filme. Ou melhor, dava um bom esquema para um espectáculo: um palhaço que deambula pela vida, carregando as suas frustrações, as suas memórias e as suas malas, “sempre de um lado para o outro”.

Estas idas e vindas acabaram por se materializar num espectáculo ao qual chamou Heaven e que já percorreu o país. Alguns dos truques que costuma apresentar, treina-os num ginásio de uns amigos na Amadora que serve também para dar aulas de boxe. E esta é a primeira crítica que deixa: faltam espaços de treino no país adequados à prática circense, onde possam treinar e criar. “É pena Lisboa ser uma cidade tão grande e não ter um espaço de circo”, lamenta. 

Para entender o percurso feito quase sempre de cabeça para baixo, é preciso regressar a 2002. Daniel tinha estudado desporto, mas “não funcionou”. Acabou por se inscrever, nesse ano, no Chapitô, a escola de Lisboa onde se dão os primeiros passos nas artes circenses. “Estava um bocado perdido”, confessa. No início não concorreu logo para artes. Queria estar nos bastidores e tratar da cenografia, dos adereços, dos figurinos. Mas disseram-lhe que os seus desenhos não eram muito bons e perguntaram-lhe se não queria ir antes para artes. “Por acaso foi bastante cómico, porque disse-lhes que não queria ser palhaço. Então é irónico que hoje em dia eu seja palhaço”, diz. 

No final dos três anos do curso decidiu ir para Londres estudar teatro. E depois circo novamente. Forças combinadas, mão-a-mão, acrobacia em dois ou três. Entre idas e vindas acabou por lá ficar dez anos. Nesse tempo, juntou-se com mais dois artistas e fundaram uma companhia chamada Matress Circus – que entretanto já se desfez. É por isso que Daniel diz não ser apenas artista de rua. Recorre às ruas quando não tem trabalho ou quer experimentar alguma rotina nova. 

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Entre idas e vindas, Daniel passou dez anos em Londres onde estudou artes circenses Daniel Rocha

Comparar as artes de rua em Londres e em Lisboa é comparar o incomparável, repara Daniel. Em 2008, quando passou uma temporada em Portugal, recorda que poucos artistas se viam na rua. Hoje, a Rua Augusta fá-lo lembrar a zona que rodeia o London Eye e o National Theatre, em Londres. Chama-lhe a “jungle” – a selva – porque há quatro ou cinco espectáculos a acontecer em simultâneo, “e ganha quem tiver o maior amplificador, o melhor sound system”. 

Diz que falta em Portugal uma praça como Covent Garden, onde os artistas possam actuar. É mais ou menos um espaço desses que a Porto Buskers quer criar. “São coisinhas assim que também vão atrair artistas” para o país, diz Daniel. 

Para actuar nesse espaço, é preciso pedir uma licença, que é grátis, e passar por um processo de selecção que leva meses. “Eles fazem-no para que não haja uma anarquia na rua porque, às vezes, há conflitos entre artistas”, lembra o palhaço acrobata.

Um sindicato para os artistas?

É um trabalho precário, muitas vezes pago com recibos verdes. “A cada trabalho tenho de dar ao Estado 25%. Isto é infeliz”, lamenta Daniel Gonçalves. Nas ruas, estão dependentes da sua capacidade de fazer com que as pessoas paguem por aquilo que acabaram de ver. “Não podes exigir que as pessoas te dêem dinheiro”, diz Daniel, para quem o acto de passar o chapéu é “uma arte”. “Também é aquilo que te faz sentir bem contigo próprio. É saíres à rua e teres a consciência de que não estás a pedir”.

Em Portugal, Daniel sente falta de apoio e entreajuda entre artistas. “Em Londres, apoiávamo-nos uns aos outros. Aqui é muito solitário”. Faz falta, por exemplo, um sindicato, avança. Prova disso, diz, é que ninguém faz ideia de quantos profissionais trabalham nas artes circenses, na rua. 

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Daniel Rocha

“Há um sindicato de jornalistas, não há? Devia haver um sindicato dos artistas. Não há uma voz. Acho que é preciso haver um sindicato para que a gente saiba quem está realmente cá, quem quer fazer coisas”, acredita. 

A ideia também agrada a Mariana Filipe, sobretudo porque há pessoas que não dão “o devido valor” aos artistas de rua. “Para estar aqui a tocar à vontade tive todo um percurso. Tenho gastos com as cordas, toda a manutenção do instrumento. Música parece fácil. Tu chegas aqui e sai som. Mas não, há todo um percurso. Se calhar com esse sindicato, haveria mais respeito”. 

Além de tocar nas ruas, Mariana dá também aulas de violoncelo. Diz que vai havendo sempre trabalho. Tem em casa um estúdio com o namorado e estão a tentar gravar algumas músicas. Mas também gosta de estar na rua porque se vai testando — a si própria e à sua música. “Eu não quero ser solista. Quero, apesar de tudo, criar e ser feliz com a minha música”, diz. 

Para eles, as artes de rua também têm o seu papel. Mariana Filipe vê nas ruas de Lisboa a oportunidade de divulgar um instrumento não tão conhecido como o violoncelo, “mais ligado à música erudita”.

Já Daniel acredita que nem toda a gente tem, por exemplo, a hipótese de ir ao teatro e a rua é um palco aberto a todos: “Se enquanto estiver a actuar esqueceres um bocadinho a tua vida e conseguires entrar dentro da minha magia, acho que, em 40 minutos, te mostrei a possibilidade de uma vida diferente”.

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