Fernando Mamede: "Quando se falava em psicólogos era porque um gajo era maluquinho"

O acompanhamento psicológico aos atletas de alto rendimento é uma componente vital do desempenho desportivo. O PÚBLICO falou com atletas e especialistas sobre o estado da psicologia desportiva em Portugal.

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Fernando Mamede e Carlos Lopes, em Estocolmo. O primeiro tinha acabado de bater o recorde mundial dos 10.000m LUSA

Andrés Iniesta, Gianluigi Buffon, André Gomes: nos últimos meses, várias figuras do desporto vieram a público confessar que, longe dos holofotes mediáticos, se escondem dúvidas, medos e aflições, próprios daqueles que, como eles, estão a ser observados — e julgados — em permanência. O PÚBLICO falou com especialistas e atletas para perceber a importância da psicologia desportiva na competição de alto rendimento e se, em Portugal, este departamento é valorizado pelas entidades desportivas.

Quando se fala em psicologia do desporto há um nome que surge de imediato: Fernando Mamede. O ex-atleta do Sporting deteve todos os recordes nacionais — desde os 500m até aos 10.000m —, alguns dos quais permaneceram intactos durante décadas. A expectativa que todos criaram em torno dos resultados estabelecidos nos treinos e provas foram um peso demasiado grande para o atleta que, nas grandes competições, não conseguia lidar com a pressão.

“Não tenho problemas em falar disto. Há pessoas que escondem, mas a pessoa não tem culpa. Nasceu assim. Isto é genético. A primeira vez que me apercebi disto foi em 1970, nos Campeonatos da Europa de Juniores, em Paris. Foi aí que soube da minha ansiedade. Como ia com o melhor tempo da Europa nos 800m já não andei bem. Era o medo de ganhar, de as coisas correrem mal, vários medos”, explica Fernando Mamede ao PÚBLICO.

Nos oito anos que se seguiram à competição de Paris, o atleta não voltou a sentir problemas de ansiedade. “Entretanto andei nos 800m e 1500m e era um atleta razoável. Ia aos Campeonatos e aos Jogos Olímpicos e ser eliminado à primeira era normalíssimo”, justifica. As crises regressaram quando o corredor voltou a competir nos 5000 m, distância onde se esperava que vencesse com relativa facilidade. “Lá está, aquilo apenas acontecia nos momentos de destaque. Em 1978, em Praga, sou um dos favoritos. E aí vem novamente a ansiedade, os problemas todos que um atleta de alta competição tem”, explica.

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O internacional português André Gomes viveu tempos difíceis em Barcelona REUTERS/CARL RECINE

"Os que procuravam ajuda eram diminuídos pelos colegas"

Um estudo da Universidade Técnica de Munique comprovou que, tal como Fernando Mamede referiu, os atletas que dependem exclusivamente de si estão mais sujeitos a sofrerem de depressão. Numa amostra de 128 jovens futebolistas alemães e 71 atletas de modalidades individuais, estes últimos tinham maiores sinais de depressão do que os congéneres das modalidades colectivas. O trabalho também revela que os atletas jovens têm maior risco de sofrer destes problemas, alertando para a importância do apoio familiar e social.

Fernando Mamede sofreu sozinho durante décadas. Nos anos 70, o acompanhamento psicológico dos atletas em Portugal era, simplesmente, inexistente. “Ninguém falava de psicologia do desporto. Quando se falava em psicólogos era porque o gajo era maluquinho, era estúpido. Os que procuravam ajuda eram diminuídos pelos colegas”, relembra o sportinguista.

Os Jogos Olímpicos eram o grande objectivo do corredor desde a primeira prova. Nos Jogos de 1972, em Munique, não teve problemas, por não ser favorito. Nas Olimpíadas de 1984, em Los Angeles, a história não foi igual. Desistiu a meio da prova e desapareceu durante 36 horas. Moniz Pereira, treinador de Fernando Mamede, preocupado, procurou-o por todo o lado. Na semana seguinte, em Zurique, venceu nos 5000m, a mesma prova que não tinha conseguido terminar nos Estados Unidos. 

“Agora tinha muito mais armas para combater isto. Deixa-me amargurado porque, infelizmente, Portugal não tinha estes tratamentos. No estrangeiro já existiam. Para seres atleta de alta competição tens de limpar a mente. Apesar de, nos desportos colectivos, este tipo de problemas ser menor. Não é o jogador sozinho que decide o título, é a equipa. No atletismo somos uma modalidade individual e, por nós próprios, temos de fazer as coisas”.

Portugal “está um bocado atrasado”

Jorge Silvério, especialista em Psicologia do Desporto — e psicólogo da selecção nacional de futsal — afirma que, no nosso país, ainda não é dada a devida importância a este departamento da performance desportiva: “Há quatro componentes do rendimento desportivo: técnico, táctico, físico e psicológico. Eu não gosto de colocar percentagens, mas, quando ouvimos o discurso dos treinadores e jogadores, vemos que dão uma grande importância aos aspectos psicológicos. Estamos ainda um bocado atrasados. Vamos tendo algumas experiências de sucesso. Já trabalho praticamente há 30 anos na área e reconheço que existiram melhorias, mas gostaria que tivessem sido mais rápidas”.

O psicólogo que trabalha de perto com alguns dos maiores atletas nacionais garante que as dificuldades financeiras — muitas vezes invocadas pelos clubes — não são, de todo, uma explicação lógica para a ausência de um profissional que providencie este tipo de acompanhamento.

“Ao nível do futebol profissional, por exemplo, há muitos clubes que não têm esse departamento. O factor [das dificuldades financeiras] pode ser invocado, mas não o deveria ser. Vou dar-lhe um exemplo concreto: se houver um psicólogo competente a acompanhar um jogador, a probabilidade de ele render mais dinheiro no mercado de transferências aumenta, porque estamos a falar de um atleta ainda mais completo. Só essa mais-valia que os clubes obtêm dava para pagar o salário a vários psicólogos”, refere Jorge Silvério.

O psicólogo acrescenta ainda que existe uma necessidade urgente de desmistificar a psicologia, de modo a que os atletas não escondam eventuais dificuldades anímicas: “Ainda há a ideia de que só vamos ao psicólogo se formos maluquinhos. [Dos atletas que acompanho], a dificuldade em lidar com a ansiedade é o maior problema. Muitos pedem para que não se saiba que estão a ver o psicólogo, o que não faz sentido, porque o jogador fica mais completo."

"O meu cérebro inventou uma realidade virtual para lidar com a eliminação"

Mais recentemente, Célio Dias foi um dos desportistas em Portugal que falou abertamente sobre as dificuldades que enfrentou na sua carreira. Em 2016, o judoca foi eliminado nos Jogos Olímpicos do Rio, na primeira eliminatória, por um atleta menos cotado. O afastamento precoce provocou uma crise e colocou um entrave momentâneo na carreira de Célio que, até então, estava recheada de títulos e vitórias.

“Desde cedo que tive grandes resultados. Apenas um ano após ter começado a praticar desporto já era campeão nacional. Os Jogos Olímpicos eram o grande objectivo. A eliminação foi a causa dos problemas, sem dúvida. Era um dos candidatos às medalhas. A pressão da competição e o facto de ter ficado longe das expectativas provaram-se tóxicos e o meu cérebro inventou uma realidade virtual para lidar com a eliminação”.

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Célio Dias representou Portugal no Rio de Janeiro COP

Célio tentou o suicídio por duas vezes. O comportamento errático nas redes sociais foi uma forma de chamar a atenção, mas ninguém sabia realmente o que se estava a passar com o desportista. Sentia-se doente. "Criei uma teoria alucinogénia em que as marcas controlavam a mente das pessoas e seria eu a desmantelá-la. Entretanto, fui internado no hospital. Os médicos pensavam que era um acto isolado". Depois de ter saído do hospital seguiram-se 11 meses de depressão. Por fim, foi-lhe diagnosticada uma doença mental chamada síndrome esquizo compulsiva e através da medicação conseguiu manter a situação controlada.

"Entre 2013 e 2015 fui acompanhado por uma psicóloga. Em 2016, desconsiderei esse acompanhamento. Pensei que já tinha as ferramentas necessárias para lidar com o stress da competição. O acompanhamento psicológico é fundamental e torna-se uma maneira de integrarmos a nossa vida desportiva no quotidiano, enquadrá-la apenas como um dos parâmetros da realidade", explica Célio. Actualmente, compete no Clube Construções Norte-Sul, de Almada, e, para além do judo, tem uma carreira de modelo.

Árbitros também recebem acompanhamento

Para além dos jogadores, os árbitros são outros dos intervenientes que compõem a competição de alto rendimento. São, também, os mais julgados e criticados pelos adeptos, jogadores, treinadores e dirigentes. Luís Parente é especialista em Psicologia do Desporto e trabalha com os árbitros da Associação de Basquetebol de Aveiro. Ao PÚBLICO, afirma que o principal factor se prende com a desvalorização do erro.

"Trabalhamos com os árbitros que apitam a primeira divisão até aos miúdos de 15 e 16 anos que estão agora a começar. Temos um programa de trabalho direccionado às capacidades psicológicas. O controlo emocional, a capacidade de lidar com a pressão e de ultrapassarem potenciais erros que aconteçam durante o jogo. Muitas vezes há a tendência de continuar com o pensamento virado para o erro. Um atleta falha, faz parte do processo. O árbitro também tem direito a falhar. Temos de desmistificar o erro e torná-lo num aspecto de evolução", explica o psicólogo.

Um dos juízes que foi acompanhado psicologicamente foi Pedro Henriques. O ex-árbitro — que escreve para o PÚBLICO sobre arbitragem — detalha alguns dos exercícios que o preparavam para os grandes jogos. “Utilizávamos algumas técnicas para aumentar a concentração no jogo. Treinávamos a visualização e a antecipação. Preparávamos todos os cenários e situações possíveis para que, quando chegasse o momento, estivesse preparado", explica.

Para os árbitros, há dois grandes momentos de ansiedade: os dias antes da partida e, em caso de erro, os dias que se seguem aos 90 minutos. “Quando estava em situação de relaxamento, o psicólogo ia-me dizendo coisas agradáveis e eu colocava o polegar no interior da outra mão. Quando fazia isso libertava substâncias químicas que aliviavam o stress. Quando estou numa situação de desconforto em que estou a ser pressionado, o simples facto de fazer esse gesto ajuda um pouco”, atesta o antigo árbitro.

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Pedro Henriques arbitrou a primeira categoria a partir de 2001 ASF / PÙBLICO

Os exercícios que se fazem após a partida vão de encontro à redução do erro a um elemento inevitável no papel do árbitro de futebol. “Estamos numa actividade em que é impossível não errar. Nenhum árbitro do mundo. Não nos podemos deixar ir abaixo porque um jornal, jornalista ou clube faz uma crítica”, acrescenta.

Fazendo uma análise à carreira dentro das quatro linhas, Pedro Henriques garante que, se pudesse voltar atrás, escolheria receber acompanhamento psicológico desde o início. Revela, ainda, que este tipo de exercícios foram particularmente importantes nos dias que antecediam os clássicos e derbies que pudessem definir quem seria o campeão nacional. “Fiz três jogos entre Benfica e Sporting no Estádio da Luz. Depois arbitrei o FC Porto-Sporting no Dragão. Normalmente temos um plano de exercícios, mas estes jogos envolvem maior mediatismo. Trabalhávamos mais a parte da descontracção e relaxamento. Olhava para aquele momento [de stress] como algo positivo, porque era eu que o tinha conquistado”.

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