Por labirintos

Os espaços construídos pelos humanos sempre foram assim, sempre tiveram muitas mais dimensões do que aquelas que nos quiseram fazer crer.

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Álvaro Domingues

(…) pensei num labirinto de labirintos, num labirinto sinuoso em crescimento que abarcasse o passado e o futuro e que implicasse de algum modo as estrelas. Absorto nessas imagens ilusórias, esqueci-me do meu destino de homem perseguido. Senti-me, por um tempo indeterminado, conhecedor abstracto do mundo. O vago e vivo campo, a lua, os restos da tarde, operaram alguma coisa em mim; também o declive, que eliminava qualquer possibilidade de cansaço. A tarde era íntima, infinita. O caminho descia e bifurcava-se entre as já confusas pradarias. (1)

Imaginemos a mulher que varre a cobertura do grande edifício. Metida com os seus próprios pensamentos, trabalha maquinalmente retirando lixo dos escoamentos da água da chuva, juntando pequenos montes de detritos que depois reunirá num único saco. Há tardes assim. Em vez daquelas máquinas ruidosas, da agitação de escovas e aspiradores, porta-discos, tanques de água e detergente ou secante, polimento a deslizar pelo pavimento brilhante do complexo desportivo, há esta libertação de sair pelos telhados com uma simples vassoura como se fosse, de repente, a bruxa que se desprendesse daquela farda azul e levantasse pelos ares, o vestido negro, a verruga, o nariz adunco e a gargalhada sinistra a sumir-se para lá da auto-estrada. Ou então aquela mulher suicida de um romance de Valter Hugo Mãe, O Apocalipse dos Trabalhadores, a Maria da Graça que, cansada da vida, das limpezas, do dinheiro ganho a chorar mortos solitários que ninguém vela, do marido embarcado a quem não dedica a menor afeição, do patrão que a usa, dos pesadelos constantes em que se apresenta morta às portas do céu onde se vendiam souvenirs da vida na terra… sobe, decidida, à cobertura do edifício para se despenhar portas da morte adentro de encontro aos estendais da roupa, ao chão, à liberdade.

Não é uma nem outra, porém, nem bruxa, nem suicida, é, simplesmente uma profissional das limpezas no ofício de limpar aquilo que o vento e a chuva deviam ter limpo. Impressionou-me aquela aproximação à borda do abismo, o trabalho minucioso e sem pressa, interrompido por algumas miradas ao mundo que dali se via e não era pouco: o grande centro comercial com as suas riscas e cores, o hotel altíssimo sobre a autopista, estradas sobre estradas, saídas, descidas, pilares, automóveis, pórticos com sinalização, farrapos de relva ou de ervas, candeeiros, uma escada minúscula a sumir-se pela lateral. Ao longe uma colina arborizada, a sequência dos telhados, dos prédios, das casas, das empenas.

Por tudo isso me lembrei de Borges; pensei num labirinto de labirintos, senti-me, por breves segundos, um conhecedor abstracto do mundo, dos restos da tarde, da realidade que se bifurca sempre que pretendemos aprisioná-la num esquema, numa imagem simples. Não me senti perseguido; senti-me desafiado, algo perplexo perante o presente-futuro sinuoso, o espaço desmultiplicado.

São assim certos lugares: heterotopias como diria Michel Foucault, lugares que parecem estar fora do lugar, geografias de formas variadas, ambiências capazes de serem apreendidas por diferentes planos narrativos ou diferentes representações; lugares onde se podem experimentar sensações diversas, lugares conectados a muitos outros, lugares de significados justapostos, contraditórios, dispostos como no teatro, no rectângulo da cena, mas em diferentes planos ligados ou desligados; amontoados, uma vezes; outras vezes, fragmentos ligando-se e desligando-se, respondendo a tempos diferentes, distintos usos, imaginários ou memórias: estamos na época da simultaneidade, estamos na época da justaposição, a época do perto e do longe, do lado-a-lado, do dispersivo. (2)

Creio que os espaços construídos pelos humanos sempre foram assim, sempre tiveram muitas mais dimensões do que aquelas que nos quiseram fazer crer. Temo-nos esforçado bastante por simplificá-los, ganhando numa ilusão de compreensão racionalista tudo aquilo que desdenhamos e acabamos por perder, mas que pertence à camada mais profunda dos modos de pensar e fazer desses mamíferos: não seguirem só pela via única, pelo atalho ou pelo caminho das pedras, descentrarem-se, engendrarem e desfazerem modos de vida em conjunto, povoando o mundo de diferentes, escrevendo-se em textos onde com facilidade se perde o fio, a trama da história, a linha da narrativa.

É então que a realidade nos aparece como teia de encadeamento entre espaços e tempos que não se desvendam nem por iguais ritmos e sequências cronológicas, nem por geometrias dispostas nos mesmos planos por regras comuns. Existem pulsações diferentes, tempos lentos ou rápidos, espaços de deslocalização, lugares ou pontos que se definem por relações com outros ali ao lado ou muito longe, movimentos que se alinham ordenados pelas faixas da auto-estrada, ou que derivam por indeterminações, labirintos, caminhos que se bifurcam.

Vai varrer para dentro, mulher. Deixa os montinhos do lixo. Experimenta um arremesso de vassoura e vê se me acertas. Eh, eh, aqui, deste lado! Isso, sou este de braços abertos, atira! Não? Pois sim.


1 - Jorge Luis Borges (1941), El jardín de senderos que se bifurcan, https://www.literatura.us/borges/jardin.html

2 - Michel Foucault, Dits et écrits 1984, Des espaces autres (conferência no Cercle d’Études Architecturales, 14 de Março 1967), in Architecture, Mouvement, Continuité, n°5, Outubro 1984

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