Pré-publicação: Cinema ao vivo. Francis Ford Coppola

O Cinema ao Vivo e as suas técnicas é o nomeda obra de Francis Coppola que chega a Portugal pelas Edições 70. Escrita em 2017,nela o cineasta de Do Fundo do Coração vê possibilidades eufóricas no digital: uma ruptura tão decisiva como a da passagem do mudo aos talkies. É teatro, é cinema, é televisão. Dia 27 nas livrarias.

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Francis Coppola na rodagem de Do Fundo do Coração, o filme em que sonhou com o cinema de uma nova era

A televisão teve o seu verdadeiro começo nos EUA no final da Segunda Guerra Mundial, já que muitos jovens soldados se encontravam em Nova Iorque, Chicago e noutras cidades de maiores dimensões. Muitos destes militares que tinham participado nas unidades artísticas do Exército, incluindo nas companhias de teatro itinerantes, e até nos corpos de transmissões, estavam ansiosos para encontrar emprego na nova indústria. Os que vieram para Nova Iorque encontraram um lugar especialmente fértil para iniciar a carreira. Também o teatro nova-iorquino estava resplandecente, com ótimos atores que trabalhavam sobretudo à noite, estando, por isso, disponíveis para ensaiar de manhã e à tarde, guardando os domingos livres para as rodagens. Havia vários estúdios sediados na cidade, um deles, famoso, localizava-se no topo da Grand Central Station; outro, o DuMont, no grande armazém da Wanamaker, na 9th Street e na Broadway.

No início, o trabalho dificilmente resultava em bom material. A poderosa indústria cinematográfica, atenta a esta nova forma de entretenimento, era resistente a qualquer cooperação, a menos que lhe fosse permitida a compra ou o controlo desta nova forma artística. Durante mais de quarenta anos, os estúdios cinematográficos adaptaram e compraram todos os materiais literários disponíveis — romances, histórias e peças, bem como todos os direitos de autor. O material disponível para os jovens talentosos produtores de televisão, como Fred Coe, que vinha da Yale School of Drama, era escasso. No início, optaram pelos clássicos, cujos direitos estavam em domínio público, como as obras de Shakespeare, mas essa escolha teve um fraco impacto comparando com o material empolgante e de alta qualidade acumulado ao longo dos anos pela competitiva indústria cinematográfica.

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Na rodagem de Apocalypse Now, o Vietname de Coppola

Ocorreu, todavia, uma mudança no pensamento devido à chegada de novos talentos no período pós-guerra. Os novos realizadores de televisão, como Arthur Penn, recentemente dispensado das Forças Armadas, lembraram-se de que haviam conhecido jovens escritores nos serviços que tinham integrado. Na nova indústria, muitos profissionais pensavam não ter nada a perder ao deixar estes jovens dramaturgos recém-dispensados tentarem a sua sorte e escreverem sobre o que lhes ocorresse. Destes grandes escritores em potência constavam nomes como Paddy Chayefsky, JP Miller, Gore Vidal e Rod Serling. Contemporâneos e íntimos, os resultados dos seus trabalhos incendiaram este novo meio de comunicação. Assim começa a Era Dourada da Televisão em Direto. Sidney Lumet contou-me que quando foi recrutado do teatro para o programa Danger, da CBS, conheceu um realizador de televisão empolgante, de quem viria a ser assistente, tendo ele próprio como assistente um novato chamado John Frankenheimer. Certo dia, o realizador do programa, um profissional de passagem pela televisão, disse-lhes: “Bem, rapazes, vou a uma audição para o novo musical na Broadway.” Esse homem era Yul Brynner, que viria a desempenhar um papel central em O Rei e Eu, permitindo que Lumet fosse promovido a realizador e Frankenheimer a assistente de realização.

O período “em direto” que se seguiria ficou conhecido como a Era Dourada da Televisão. Produções extraordinárias como Marty, Days of Wine and Roses, Requiem for a Heavyweight, Patterns e The Comedian permanecerão para sempre como clássicos.

Entre os realizadores de televisão em direto, John Frankenheimer tendeu para um estilo mais cinemático, já que aspirava tornar-se realizador de filmes. Quando cunhei o termo Cinema ao Vivo, tinha em mente estas produções, uma vez que Frankenheimer contava as suas histórias com a melhor representação e escrita, e também com planos cinemáticos e uma montagem empolgantes. Ainda que Frankenheimer não tenha sido escolhido para realizar a última versão em filme de Days of Wine and Roses, a sua versão televisiva em direto, com Cliff Robertson e Piper Laurie, é, para mim, muito mais emocionante e emotiva, devido à imediatez e à desoladora realidade que os desempenhos ao vivo, combinados com a visão cinemática de Frankenheimer, conferem à história.

Nunca esquecerei o dia em que, a meio da década de 1950, a minha mãe entrou no meu quarto e me disse que o pai estava na televisão. Corri para a televisão que se encontrava no estúdio, dois pisos abaixo, e ali estava ele — a tocar flauta no nosso ecrã. Mas virei-me, e ali estava ele também, sentado ao piano a ver a transmissão. Foi estonteante. Explicou que o programa tinha sido registado com o novo gravador de vídeo Ampex (com o jovem Ray Dolby na equipa) e que era absolutamente impossível distinguir se se tratava de uma gravação ou de um direto. O aparelho Ampex foi lançado em 1956 (um ano antes da transmissão de The Comedian, de Frankenheimer), sucedendo-lhe, em 1959, um gravador de vídeo de fita helicoidal da Toshiba que resolveu o problema da enorme largura de banda requerida pelo vídeo por meio de uma cabeça de leitura rotativa. Por ter sido filmado num estilo cinemático e tudo nele ter sido feito com um magnífico desempenho ao vivo, The Comedian é, na minha opinião, a obra-prima do Cinema ao Vivo. A vida e a realidade dos desempenhos era tal, que tornava estes espetáculos memoráveis. Frankenheimer continuou a trabalhar em produções cada vez maiores, tanto em direto como pré-gravadas, algumas para a Playhouse 90, como The Turn of the Screw, com Ingrid Bergman como protagonista, e uma versão de Por Quem Os Sinos Dobram em duas partes. Com o novo gravador de vídeo, Hollywood alcançou finalmente a televisão. O fator económico prevaleceu e a Era Dourada sucumbiu às produções de filmes montados e comédias como I Love Lucy, seguida de décadas de entretenimento filmado.

Uma nova era de possibilidades

Passou mais de metade de um século sobre o fim desse período criativo excecional, e a televisão ocupou, entretanto, vários domínios. Hoje, o desporto continua a ser a programação disponível mais popular e os programas são “ao vivo” por necessidade. Os vários programas de atribuição de prémios que se sucederam imediatamente, num seguidismo cego, aos Óscares da Academia, também decorrem em direto. O entretenimento televisivo é geralmente um produto embalado, excetuando o fenómeno das estações estritamente noticiosas — que seguiram a ideia brilhante de Ted Turner ao usar satélites para criar uma superestação, como é o caso da CNN, em Atlanta — e de alguns espetáculos ao vivo, como musicais ou peças de teatro.

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Vince Bucci/Getty Images

Curiosamente, da tecnologia que surgiu com o desporto — difusores de satélite e servidores de reprodução instantânea, bem como muitas outras tecnologias que surgem mensalmente —, há uma panóplia de equipamentos que poderá ser orientada para o storytelling, se assim se quiser. Parecem ter chegado ao fim os dias em que a televisão era uma consola em casa e os filmes eram vistos na sala de cinema. A televisão e os filmes são hoje praticamente a mesma coisa, como demonstraram as séries Os Sopranos e Breaking Bad. Os filmes oscilam entre um minuto e 100 horas e podem ser vistos em qualquer lugar do mundo — em casa, no cinema, na igreja ou no centro comunitário —, graças aos satélites e à eletrónica digital.

O meu momento mais profético e embaraçoso

O meu amigo Bill Graham, promotor de música rock e ator, sempre quis ir à entrega dos prémios dos Óscares da Academia. Em 1979, quando fui convidado para ser apresentador, decidi oferecer-lhe um dos meus bilhetes especiais, ficando a minha família sentada em lugares bem piores numa outra área. Ambos vestimos smokings e o Bill gostou bastante do programa. Reparei, todavia, que ele continuava a mastigar as bolachas que tinha trazido num saco. Como nunca ninguém se sentiria confortável sentado ao lado de alguém a comer, peguei no pacote, tirei uma bolacha e comi-a. Ele ficou pálido e disse: “Não, dessas não.” Não percebi aquela reação. Pouco depois, vindo do corredor, um funcionário da Academia aproxima-se e avisa-me de que está na hora de ir para os bastidores preparar a minha parte do programa. Eu era um dos apresentadores do prémio de Melhor Realizador, em dupla com a atriz Ali MacGraw. Michael Cimino, um homem muito querido e tímido, venceu o prémio com o filme O Caçador. Ainda hoje fico envergonhado ao ver os vídeos deste evento, mesmo passados tantos anos. Quando cheguei ao palco, prestes a anunciar o vencedor, senti-me esquisito por causa daquela bolacha que continha sei lá o quê. Coçando continuamente a barba, desvendei, perante milhões de espectadores em todo o mundo, um pouco do futuro do Cinema ao Vivo:

Penso que estamos na véspera de algo que fará parecer a Revolução Industrial uma brincadeira de crianças. Falo da revolução da comunicação que, creio, está a chegar muito rapidamente. Vejo uma revolução na comunicação que implica os filmes, a arte, a música, os circuitos digitais, os computadores e os satélites e, sobretudo, o talento humano. Esta revolução fará coisas que os mestres do cinema, de quem herdámos este negócio, não acreditariam ser possível.

Lembrar-me-ei para sempre da expressão espantada da Ali MacGraw quando proferi esse discurso improvisado!

A segunda Era Dourada da Televisão

O período do cinema que vai dos anos 70 ao início dos anos 80 é considerado inovador no campo da expressão individual. Anos mais tarde, esta época veio a ser fonte de inspiração para a geração seguinte de realizadores: tinham visto O Touro Enraivecido, O Rei da Comédia, Chinatown, Taxi Driver, Os Incorruptíveis contra a Droga, Manhattan e alguns dos meus filmes. No entanto, estes novos autores perceberam que Hollywood fechava as portas de uma era permissiva e que a oportunidade de fazer filmes de acordo com esta tradição tinha acabado. Voltaram-se, então, para o longo formato da televisão por cabo, empenhados em fazer esse tipo de cinema mais pessoal. Isto levou a uma segunda Era Dourada da Televisão, com produções como Os Sopranos, Breaking Bad, The Wire, Mad Men e Deadwood, para referir apenas alguns. Além disso, durante este período, que começou em 1975, havia televisão ao vivo que roçava o Cinema ao Vivo, como o Saturday Night Live (SNL).

Saturday Night Live

O programa SNL conseguiu tornar-se simultaneamente popular e relevante — popular porque é relevante, sem dúvida. É desempenhado ao vivo e aproxima-se do Cinema ao Vivo porque conta uma história através de uma sequência de planos, em vez de uma simples cobertura do acontecimento em palco. Isto não é novo: Ernie Kovacs fê-lo muitas vezes, tal como Sid Caesar, Imogene Coca e Jackie Gleason. O programa de comédia The Honeymooners costumava parodiar acontecimentos atuais. Estes programas são certamente tão divertidos gravados quanto em direto, como demonstram as valiosas versões de arquivo (alguns episódios de SNL recorreram a porções gravadas, partes filmadas e a servidores de reprodução EVS). Qual é, então, a diferença entre estes dois modos de ver o programa? O SNL é “ao vivo” na sua essência, porque isso lhe permite ser imediatamente pertinente em relação aos tópicos e acontecimentos atuais. A paródia das últimas notícias do SNL pode integrar reveses da política que acabam de acontecer. Esta é a essência dos eventos em direto. Posto de uma forma simples: não se sabe o que acontecerá até que aconteça.

O SNL é, por definição, um programa de Cinema ao Vivo, como qualquer evento desportivo ou cobertura de um acontecimento noticioso deve ser, seja ele visto e apreciado mais tarde ou não. Os programas populares de comédia são uma paródia dos temas da atualidade e, por isso, devem esperar que estes se mostrem antes de poderem parodiá-los. É melhor vê-los na frescura do momento, mas há também um segundo modo, quando são vistos mais tarde. É um pouco como os álbuns de fotografia de família: são apreciados à primeira vista, mas são-no, por vezes, mais ainda quando a eles se volta posteriormente, já depois da passagem do tempo os ter tornado vintage.

Recentemente vi Lost in London, de Woody Harrelson, filmado com uma única câmara, numa só noite, e transmitido ao vivo para 500 salas. Foi, na minha opinião, um sucesso total — divertido, cheio de energia e uma demonstração incrível da criatividade tecnológica. Ultrapassou o obstáculo do “ao vivo”, claro, recorrendo a um único plano para o filme todo, como A Arca Russa, Birdman ou Victoria. Acredito que tenha sido o primeiro acontecimento de Cinema ao Vivo transmitido diretamente para as salas, todavia, é possível que essa distinção pertença à magnífica produção de Andrea Andermann para La Traviata. A decisão tomada por Harrelson de usar apenas “uma câmara” permitiu cobrir a encenação sem trocar de câmara, acom-panhando, num tour de force, a impressionante atuação de Harrelson e da sua equipa, até deixar o público em êxtase. Eis a prova provada de que quando um projeto é bem ensaiado os atores abraçam o desafio, como aconteceu por certo com esta equipa. Lost in London é, definitivamente, um marco na história do Cinema ao Vivo.

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