A crise da ADSE e a oportunidade do SNS

Esta é uma oportunidade única para o Estado se dedicar, com afinco e de forma disruptiva, a melhorar o SNS.

A crise que a ADSE atravessa pode, na verdade, conceder ao SNS uma oportunidade única.

Resulte ela em extinção ou apenas em redução da atratividade para os beneficiários, a crise da ADSE abre ao SNS a oportunidade de melhorar os cuidados de saúde prestados e recebidos por todos os portugueses.

Mesmo que a discórdia em curso sobre os pagamentos retroativos a privados acabe por se resolver – como acredito que se resolva –, a ADSE vai continuar a correr os sérios e conhecidos riscos de inviabilidade a muito curto prazo: insustentável a partir de 2024 e com défices já a partir de 2019.

Se a ADSE se extinguir ou se tornar menos atrativa, os funcionários públicos deixarão de recorrer aos serviços de saúde privados com a mesma facilidade e vontade com que hoje o fazem. Nesse cenário, procurarão, certamente, formas alternativas de assistência médica.

A discussão sobre as consequências da crise da ADSE tem-se centrado, essencialmente, na oportunidade que esta crise representa para os seguros de saúde privados.

Assume-se, pois, que os funcionários públicos, ao deixarem de contar com a ADSE, continuarão a recorrer aos serviços de saúde privados, mas agora através dos seguros que, entretanto, compraram com os 3,5% do salário que deixaram de descontar para a ADSE. As tabelas de preços desses seguros de saúde, apesar de não tão simpáticas como as antigas tabelas da ADSE, são, ainda assim, aceitáveis e atrativas.

Onde fica o SNS no meio desta discussão? Por que razão os funcionários públicos não transferirão maioritariamente a sua procura de serviços de saúde para o SNS em vez de a manterem nos hospitais privados? A razão que todos conhecem – mas que poucos se sentem confortáveis em verbalizar – é que o SNS tem, atualmente, uma imagem generalizada de prestação de piores níveis de serviço do que os privados. Uma imagem de que não pode competir com eles.

A única referência recente que encontrei ao possível aumento da procura no SNS na sequência da extinção da ADSE veio do próprio presidente da Comissão para a Reforma do Modelo da ADSE, que alertou para o “risco de perda de negócio por parte dos prestadores privados na relação com a ADSE, com os beneficiários a recorrerem a outros operadores ou até mesmo ao SNS”. “Até mesmo” ao SNS?! É impossível que o tom pejorativo deste “até mesmo” nos passe despercebido! Ficamos com a ideia de que recorrer ao SNS é qualquer coisa parecida com o cúmulo da degradação a que um ser humano pode chegar.

Os funcionários públicos são tradicionalmente vistos como uma pequena elite deste país – por pouco democrático que isso possa parecer face aos trabalhadores do setor privado. Só para dar alguns exemplos, os funcionários públicos estão bastante menos expostos ao desemprego, muitos deles cumprem horários de trabalho com cargas horárias inferiores e o salário mínimo da função pública é superior ao dos trabalhadores do setor privado.

Durante muito tempo, o próprio Estado pagou a fatia mais larga da contribuição de cada funcionário público para a ADSE. Mas essa fatia foi emagrecendo até se extinguir em 2014 – altura em que os funcionários públicos ficaram “por conta própria” nos descontos para a ADSE, passando a pagar na totalidade os 3,5% do salário necessários à regalia que lhes dá acessos a cuidados de saúde diferenciados a menores custos dos que são pagos pelos trabalhadores do setor privado.

Os funcionários públicos sempre puderam recorrer (e muitos recorreram e recorrem) ao SNS como qualquer outro cidadão – mas não o faziam em primeira linha porque, em muitos casos, pagariam mais e também porque achavam que o atendimento que recebiam nos privados era melhor.

Quando ficaram “por conta própria” nos pagamentos à ADSE, alguns funcionários públicos optaram por sair do sistema, deixar de descontar 3,5% do seu salário e comprar um seguro de saúde. Para os funcionários públicos com os salários mais elevados, esta opção teve, muito provavelmente, um saldo positivo. Para os funcionários públicos com níveis salariais intermédios e baixos, no entanto, o saldo deste cenário é negativo – e, por essa razão, muitos permaneceram na ADSE, apesar de “por conta própria”.

Quais serão, então, as opções dos 1,2 milhões de funcionários públicos beneficiários no cenário de extinção ou de perda de atratividade da ADSE?

Parece bastante óbvio.

Como antecipado pelo presidente da Comissão para a Reforma do Modelo da ADSE, os funcionários públicos vão recorrer a outros operadores ou “até mesmo” ao SNS. Os que auferem salários mais elevados vão comprar seguros de saúde e continuar quase em exclusivo a recorrer aos serviços privados. Os outros, os que ganham salários intermédios e baixos, vão engrossar as hostes sem alternativas que recorrem em exclusivo ao SNS. Mais uma vez, aumentará o fosso entre classes socioeconómicas.

O que pensará a maioria das pessoas deste cenário? Certamente, que o SNS vai piorar os seus níveis de serviço. Se já não funcionava bem antes, que acontecerá agora, com a inundação de novos utentes que se avizinha?

Mas não tem de ser assim!

Esta é uma oportunidade única para o Estado se dedicar, com afinco e de forma disruptiva, a melhorar o SNS.

Não com esforços lentos e incrementais, não com medidas remediadoras aqui e ali, ao sabor da contestação que vai surgindo.

Uma oportunidade de fazer uma reforma profunda do SNS. De o tornar capaz de competir com os privados na captação dos atuais 1,2 milhões de funcionários públicos beneficiários da ADSE.

Mas isso, dirão alguns, mesmo com gestões otimizadas, vai custar muito dinheiro. Onde irá o Estado buscar esse dinheiro? Ao que eu respondo: mudando a lógica orçamental, tendo a coragem de deslocar financiamentos de outros setores de atividade (incluindo dos que colocaram o nosso país na situação económica deplorável de que ainda não saímos de vez), assumindo que a saúde dos seus cidadãos é prioritária.

E que o Estado não o faça apenas porque esta crise afeta uma pequena elite de 1,2 milhões que não é decente abandonar ao seu destino.

Que o faça, sim, porque estes 1,2 milhões de cidadãos o vão ajudar a pensar seriamente no que quer para o SNS e em como quer servir os dez milhões de portugueses que somos.

Independentemente de sermos ricos, pobres ou mais ou menos.

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