“Olha a sardinha vivinha!” O pregão não morreu, mas é preciso preservá-lo

Este sábado, no mercado temporário do Bolhão, um dos sítios onde ainda resiste, discute-se a importância da linguagem do pregão no contexto do comércio tradicional.

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PAULO PIMENTA

“Olha a sardinha vivinha!”. “Quem quer pencas ou tronchudas?”. “Há carapau e sardinha, linda!”. “Olha o bom gelado!”. Era este o som de fundo, qual trilha sonora, misturado em forma de música urbana, que se ouvia nas ruas e mercados do Porto, numa época em que a melhor publicidade era feita pelo próprio vendedor de um produto, na cara do potencial cliente.

Nada que não acontecesse noutras localidades do país, cada qual com as suas especificidades regionais, adaptada aos fregueses, alguns mais habituais que outro.

Havia os que não precisavam de falar, por norma os que traziam consigo o mau tempo. Anunciavam-se de fininho, ao som de um apito ou de uma espécie de flauta pan. Ninguém queria ouvir um amolador a aproximar-se, depois de um dia de sol. Neste caso, os pregões eram substituídos por outra música, sem letra e com a melodia da chuva. Eram estes comerciantes também responsáveis por consertar uma ou outra vareta partida de um guarda-chuva com estrutura para aguentar mais um Inverno.

Todos estes sons foram desaparecendo das ruas à medida que o progresso foi atirando o comércio para dentro de quatro paredes, mais tarde, para as grandes superfícies.

São sons cristalizados no tempo, pelo efeito da memória adquirida presencialmente ou transmitida em segunda-mão às gerações seguintes.

No Porto, sobra um dos poucos museus vivos deste património imaterial. É no Bolhão, mercado municipal que já furou três séculos e um milénio, onde se guarda e tenta preservar o que a oralidade tornou quase imortal.

O pregão não está morto, mas não é feito à prova de bala. E é por isso, que neste sábado, no espaço temporário para onde aqueles que dão vida ao Bolhão, agora em obras, se mudaram em Maio do ano passado, há uma tertúlia para homenagear e discutir esta forma directa e popular, algumas vezes empolada e noutras brejeira, de vender um produto ou um serviço.

E se ali que está guardado este espólio sem arquivo físico, é lá que o PÚBLICO vai para o tentar recuperar.

O pregão brejeiro do Bolhão 

Três voltas completas, a passo lento, por todas as bancas, não se ouve um pregão. Parámos junto a uma banca de venda de legumes e perguntámos se as vendedoras e vendedores do Bolhão esqueceram-se da arte de bem apregoar. Responde-nos Ilda Araújo, 64 anos, há 33 no mercado, que não, mas há outros motivos para não o fazerem. “Os nossos pregões eram mais picantes”, diz com um sorriso comprometedor. “Aqui (no mercado temporário), há mais respeito. Já não se pode falar mal”, explica.

Indica-nos que especialista em pregões, “dos mais brejeiros”, é a vizinha de banca. É lá que está Cecília Barbosa, 56 anos, atrás da banca há 21 anos, altura em que a irmã lhe passou o testemunho. Sem pensar muito, recorda-se de um que usa no “verdadeiro Bolhão”. “Olha o grelo fresquinho, que ainda é mais fresco que o meu”, atira, justificando que tinha entregue nota de aviso.

Não os usa ali. “Ninguém os usa”, sublinha. No que agora está em obras, fazem-no “por brincadeira” porque o pregão diz já ter caído em desuso há muitos anos.

Há 30 anos no mercado, Sara Araújo, de 47 anos, numa banca de peixe uns metros mais à frente, considera existirem outros factores de impedimento para não apregoarem: “Neste espaço falta o espírito que existe no outro”.

Como Cecília, diz que o pregão caiu em desuso. No Bolhão sobrevive “por brincadeira”.

O pregão já não é necessário

E é por isso que João Carlos Brito, entre outros edições, autor do Dicionário de Calão do Porto e de Lugares e Palavras de Lisboa, em co-autoria com Eugénia Ponte, que inclui um dicionário de pregões, considera fundamental manter-se este “património imaterial vivo”. 

Juntamente com Ana Maria Ferreira, auxiliar no mercado, fará parte da tertúlia marcada para as 15h de hoje, integrada na programação do Sábados no Mercado, promovida pela Divisão Municipal de Património Cultural da autarquia.

Um estudioso dos tipos de linguagem “marginais, populares e do calão”, considera que o pregão está para os tempos antigos como agora estão as redes sociais para os tempos modernos. “Hoje já não faz sentido existirem pregões”, afirma e refere que só por isso é que deixaram de ser usados.

Limita o “período vivo” dos pregões ao espaço temporal entre 1850 e 1950. Desde aí, foi desaparecendo e “quase que já não existe”. O pregão servia como forma de publicitar um produto. “Hoje as pessoas fazem-no nas redes sociais”, sublinha.

Explica que o pregão apareceu de forma natural e obedecia a uma periodicidade e sazonalidade. De madrugada, vendia-se fruta ou leite, ao início do dia apareciam as varinas e mais tarde os amoladores, que “substituíam o pregão pela flauta”.

No Bolhão, o pregão sempre foi caracterizado por alguma brejeirice. Recorda alguns produtos que convidavam ao trocadilho, como a venda de tomates, as célebres “meias Baiona”, para mulheres, vendidas à porta do mercado, ou o clássico “Quem quer'alhos?”.

De uma forma geral, diz que o pregão é construído com uma base assente na repetição e num ritmo quase musical. Era comum passarem de pais para filhos. Muitas vezes o tom usado sugeria uma espécie de ultimato. Objectivo principal era garantir a atenção dos clientes.

O pregão foi ultrapassado por outras formas de chegar ao consumidor. “Assim como há palavras que deixam de ser usadas, o mesmo aconteceu ao pregão”. Porém, sublinha: “Ainda não está morto, mas é uma faceta da cultura popular que não pode de maneira nenhuma passar à condição do esquecimento”.

 

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