O cinema visto no teatro de guerra

Aquilo que me continua a permitir romantizar a figura do crítico que diariamente reporta dos grandes festivais é o facto de eu nunca por lá ter passado nessa função ou em qualquer outra. Honestamente, hoje em dia até prefiro que continue assim. É o mesmo que com a actividade de fazer cinema. Prefiro o meu lugar de espectador.

A minha história de amor com os maiores festivais internacionais de cinema onde nunca estive começa nos anos de 1990, tempos em que estudava na Escola Superior de Teatro e Cinema, no Bairro Alto. O João Lopes e eu ficávamos de pé longos minutos (horas?) nos corredores da escola a conversar sobre os filmes que ele vira em Cannes. Eu lia sempre a principal imprensa diária e semanal que tinha enviados em Cannes e Veneza. Nestas alturas comprava os jornais todos os dias. Não havia internet, é uma realidade que parece estranha quase ao ponto de tornar difícil a concebermos hoje como era. Lia os jornais e imaginava aquilo que os filmes poderiam ser, com base no que se escrevia sobre o que neles acontecia, levando em conta as opiniões dos críticos, e finalmente relacionando com os filmes anteriores dos realizadores que conhecia. As minhas conversas intermináveis com o João pareciam ser de duas pessoas que tinham vistos os mesmos filmes mas que só ele na verdade tinha visto. Perguntava-lhe coisas com pormenor e ele completava com as suas impressões. Sempre achei negativa a demora que até hoje é imposta entre o momento em que os filmes surgiam nos festivais e a sua exibição comercial em Lisboa. Quando estreavam. Passavam-se meses em que a realidade daqueles filmes não ia além do produto da minha imaginação. Eu entrava numa espécie de ressaca ligeira que durava até à altura em que finalmente ia ver aqueles filmes. E alimentava um desejo muito forte de um dia ir a um desses festivais. Cannes ou Veneza.

Passaram 25 anos. Até mudámos de século. Entretanto tive esporádicas colaborações com jornais e revistas, aconteceu a circunstancial cobertura deste ou daquele festival de cinema nacional, vieram os sites e os blogues de cinema, os festivais em Lisboa com uma calendarização apertada entre eles, conheci cada vez mais gente do meio, alguns poderão até dizer que faço parte do meio (meio-termo), mas nunca esmoreceu o entusiasmo com que leio sobretudo as pessoas dos jornais que relatam diariamente, de forma mais impressionista nas redes sociais ou de um modo mais extenso no site e edição impressa, aquilo que viram em Cannes, Veneza e também Berlim. As longas conversas nos corredores da escola de cinema foram substituídas por trocas de comentários e mensagens de sms que dão apenas para satisfazer pequenas curiosidades. No outro dia comentava com um amigo bem mais jovem e muito cinéfilo as qualidades da escrita sobre filmes potenciadas pelo ritmo a que um festival obriga. Ele tinha opinião contrária, não gosta da pressão de escrever a quente, prefere dar tempo à reflexão sobre cada filme, e dizia que nos festivais onde se vê três a quatro filmes por dia, é como se se atropelassem uns aos outros, tudo se mistura e é difícil pensar filme a filme. Eu gosto exactamente da escrita nos festivais por isso mesmo. Ter de escrever a quente. Deitar cá para fora a nossa relação mais visceral com os filmes. Dar maior ou menor contexto sociocultural mas agarrar sempre os filmes pelo colarinho. É isso que noto em quem escreve nos festivais e gosto ainda mais de ler essas pessoas quando mandam textos do “teatro de guerra”.

Aquilo que me continua a permitir romantizar a figura do crítico que diariamente reporta dos grandes festivais é o facto de eu nunca por lá ter passado nessa função ou em qualquer outra. Honestamente, hoje em dia até prefiro que continue assim. É o mesmo que com a actividade de fazer cinema. Prefiro o meu lugar de espectador. Assim como prefiro o lugar de quem lê aquilo que os críticos de cinema escrevem com a pressão das horas e dos minutos e dos três ou quatro filmes vistos diariamente ao longo de duas semanas. Há muitas formas de acompanhar um festival à distância, e grande parte delas disponíveis na internet. Sites e páginas de todo o tipo, em todas as línguas, graficamente enriquecidas com fotografias e trailers e directos, mas continuo a privilegiar o tratamento jornalístico tradicional. Ler os de sempre nos locais do costume. Agradecer-lhes a experiência cómoda e a ilusão de ter estado um bocadinho nas mesmas salas a ver os mesmos filmes que eles. São três momentos por ano em que não obstante a qualidade da colheita de títulos e o estatuto de autoria poderem andar um pouco esbatidos, existe uma expectativa e um grau de interesse que não desaparece. É o nosso ano de cinema que está em causa. Se o alimento não vier dali, daqueles três ou quatro eventos (reconhecendo a maior importância de dois deles e encarando o relevo do perfil alternativo de Locarno com o devido respeito) os olhos ficarão famintos e a imaginação andará carente de novos estímulos. O que os críticos nos contam a partir dos principais festivais de cinema lá fora gera sempre alguma expectativa ou até esperança.

Socorro-me da fiabilidade da memória do João Lopes no que respeita a Jean-Luc Godard factos & lendas, para rematar esta crónica com uma alusão à morte do cinema. No fundo para dizer que encontro motivos para manter o optimismo quando se trata daquilo que podemos esperar da vinda de novos filmes.

Jornalista

Sugerir correcção
Comentar