BMW contesta em tribunal condenação por uso de crianças em campanhas para adultos

Visados pela condenação da Direcção-Geral do Consumidor são igualmente televisões e jornais. Recurso começa a ser julgado esta quinta-feira.

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O anúncio passou 745 vezes numa dezena de canais de televisão Nuno Ferreira Santos

A Direcção-Geral do Consumidor (DGC) condenou a BMW Portugal por infracção do Código da Publicidade, com dolo. A decisão é relativa ao artigo 14 da lei que impede a utilização de imagens de crianças em campanhas de produtos para adultos. Esta infracção prevê multas entre os 3400 euros e os 44.890 euros. A BMW foi condenada em 30 mil euros. 

A resolução não é inédita e resulta de denúncias da Frente Cívica e da Associação Portuguesa de Direito do Consumo (APDC) de Fevereiro de 2017. Pelo menos em duas outras ocasiões, a DGC (sob a tutela da secretaria de Estado da Defesa do Consumidor) proferiu decisões condenatórias relativas a anúncios do grupo Unilever Jerónimo Martins, absolvido em tribunal em 2015 e em 2018. O PÚBLICO questionou sobre outras situações, a DGC não respondeu. 

No caso mais recente em que o tribunal reverteu a decisão da DGC, contra a Unilever, em 2018, estava em causa uma campanha de um detergente para “nódoas difíceis” na qual um bebé se sujava a comer.

Centenas de vezes

Nesse processo, o Tribunal Criminal de Lisboa entendeu que não fazia “sentido” anunciar um produto que remove nódoas resultantes de actividades infantis “sem aparecerem as próprias crianças”, segundo a sentença consultada pelo PÚBLICO. 

Mário Frota, presidente da Associação Portuguesa de Direito do Consumo, lamenta que as duas ocasiões conhecidas em que a DGC condenou uma empresa, os tribunais tenham revertido as decisões. “Os infractores aparecem com uma legião de advogados”, o que resulta, diz Frota, numa “desproporção manifesta entre quem protege o interesse geral [o Ministério Público] e quem salvaguarda os interesses particulares”.

No caso da BMW, o anúncio passou 745 vezes numa dezena de canais de televisão e foi impresso uma vez em vários jornais ou revistas entre os dias 1 e 29 de Janeiro de 2017. 

Os meios de comunicação social invocaram a “credibilidade” da anunciante BMW. Isso não impediu que fossem condenados pela mesma infracção ao número dois do artigo 14 do Código da Publicidade, mas por negligência.

A RTP foi condenada a pagar 17.500 euros, enquanto a SIC, a AXN e a Discovery tiveram uma multa de 12.500. Os títulos impressos dos grupos Cofina e Global Notícias, bem como o jornal PÚBLICO, foram condenados em 7500 euros.

O Tribunal de Oeiras começa hoje a julgar o recurso apresentado pela BMW. Uma eventual absolvição não é susceptível de ser recorrida porque esta já é uma acção judicial resultante de recurso. “Essa decisão transitada em julgado esgota o poder jurisdicional” de qualquer das partes, explica Mário Frota, jurista e presidente da APDC. 

O Código da Publicidade admite imagens de crianças em publicidades a produtos direccionados para crianças, mas impede a sua utilização em campanhas para adultos. Neste caso, a DGC rejeita os argumentos dos visados de que as crianças aparecem durante escassos segundos e de que “os automóveis fazem parte do universo das crianças”. Em contraponto, defende: “O produto não é primordialmente dirigido a menores” mas é “à sua volta que gira toda a publicidade”.

O organismo (que depende do Ministério da Economia) considera ainda que o anunciante nunca tencionou relegar as crianças para um plano secundário, como a própria BMW defendeu. Pelo contrário, alega, a marca quis dar o protagonismo às crianças “sob pena de a mensagem não passar”.

“Tal não significa que a BMW não pudesse recorrer a muitas outras soluções” para relacionar o produto a uma sensação de diversão, e “dispensar a intervenção dos menores”, refere a DGC na decisão de Dezembro de 2017. “Volte a ser criança” e “Há quanto tempo não se diverte assim?”, eram as mensagens principais.

A DGC prevê que, a ser reconhecida a ligação directa entre um carro e uma criança, se caia “no absurdo de admitir que tudo aquilo com que os menores se relacionam” é susceptível de ser anunciado recorrendo a imagens suas – “desde a roupa que vestem ao elevador que os transporta para o piso onde vivem”. E lembra que o recurso a crianças “em determinadas mensagens publicitárias” preocupa organizações de defesa do consumidor mas também de direitos cívicos e cidadania, tanto em Portugal como noutros países.

A entidade reguladora cita um estudo publicado no Brasil sobre “o trabalho das crianças na publicidade”, pela investigadora e psicóloga Cátia de Castro Bezerra em que a autora identifica “o uso de crianças”, o de animais ou as referências ao sexo ou erotismo como pertencendo todos ao conjunto de “principais apelos" ao consumo, através da publicidade, tendo "como referência a importância da sua representação e não do produto em si”. A psicóloga considera ainda que a publicidade “apropria-se das características infantis" para "criar personagens” e assim “despertar nas pessoas o desejo” por um produto ou um serviço.

Nas queixas entregues na DGC, a Frente Cívica juntou um parecer do Comité Económico e Social Europeu de 2012, no qual é referido que a utilização das crianças "como veículo" de "uma mensagem comercial em qualquer das suas formas” põe em causa “aspectos da dignidade da pessoa humana e dos direitos da criança”.

A DGC atribui à BMW Portugal a responsabilidade de decidir "divulgar no nosso país os conteúdos publicitários controvertidos, apesar de ter conhecimento e consciência" – através da "sua larga experiência em campanhas publicitárias" – das "limitações legais à intervenção de menores" nestes casos.

Por isso, considera que a empresa teve intenção e agiu com dolo. Contactada para comentar esta observação e sobre se esta campanha foi específica para Portugal, a BMW Portugal não se pronunciou porque o processo está “pendente”.

Na altura em que a Frente Cívica apresentou as queixas, em Fevereiro de 2017, João Trincheiras do Grupo BMW, justificou ao PÚBLICO que a campanha em causa "é uma campanha internacional que foi adaptada ao mercado nacional", defendeu-a como não tendo crianças como "os intervenientes principais da mensagem publicitária" e negou ter havido "aqui qualquer tipo de aproveitamento ilegal das imagens das crianças”.

Quando interpelada pela DGC, no processo de averiguações que deu lugar à decisão condenatória, a BMW defendeu-se dizendo que “as crianças surgem como uma evocação do tempo feliz” e que não houve intenção de “tentar captar a atenção dos adultos”, lê-se na decisão assinada pela directora-geral Ana Catarina Fonseca.

Os meios de comunicação visados defenderam, por sua vez, que a mensagem pretendida pelo anunciante só seria possível conjugando as imagens de crianças a brincar com as imagens do carro publicitado.

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