Joel Pina, Amália, os amantes do Tejo e os amantes do fado

Anos antes de acompanhar Amália por três décadas, Joel Pina tocou com ela num filme francês.

O Museu do Fado deu início, esta terça-feira, às suas Conversas de Museu e convidou Joel Pina, músico a quem o fado muito deve, precisamente no dia em que ele completou 99 anos e no ano em que celebra 70 anos de carreira, iniciada em 1949. Uma conversa de casa cheia que se prolongou noite dentro na Mesa de Frades, com ele a tocar com vários fadistas.

Nascido na aldeia de Rosmaninhal (Idanha-a-Nova, distrito de Castelo Branco) no ano em que nasceu Amália, 1920 (a 17 de Fevereiro mas registado a 19, data que ficou como a do seu aniversário), Joel Pina começou aos 8 anos a tocar um bandolim que lhe deu o pai, aprendendo-lhe os segredos mesmo antes de aprender solfejo, iniciando-se mais tarde na guitarra e na viola. Quando se mudou, ainda jovem, para Lisboa, frequentou o Café Luso e veio depois a integrar o Quarteto Típico de Guitarras de Martinho d’Assunção, com quem teve uns anos de aprendizagem na viola. Foi por sugestão deste que se dedicou afincadamente à viola baixo, primeiro no quarteto (onde tocavam temas populares e peças clássicas: Brahms, Wagner, Schubert, Mozart) e depois já nos meios fadistas, na Adega Machado e mais tarde com o Conjunto de Guitarras de Raul Nery. Antes dele, já havia viola baixo no fado, mas foi com ele que ela ali se popularizou. E a sua acção pioneira nessa integração regular da viola baixo no fado é ainda hoje inspiração e exemplo para sucessivas gerações.

Se ao longo da sua carreira, Joel (o nome é João Manuel Pina, mas como os músicos à época só “podiam” ter dois nomes artísticos, um dia leu “Joel” nalgum lado, viu que era a soma das duas primeiras letras de João com as duas últimas de Manuel, e Joel ficou, até hoje) acompanhou um número incontável de fadistas, há dois nomes que ressaltam dessa “legião”: Maria Teresa de Noronha (que acompanhou ao Brasil e a Inglaterra) e Amália Rodrigues, que acompanhou 29 anos, de 1966 até 1994, e com quem correu mundo.

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Jaime Santos, Joel Pina (ao centro) e Santos Moreira no filme Os Amantes do Tejo DR

Mas com Amália, que ele não se cansa de elogiar como uma das maiores cantoras do mundo e “uma pessoa rara”, em virtudes e gosto, teve um encontro anterior: foi no filme francês Les Amants du Tage (Os Amantes do Tejo), de Henri Verneuil, cujos exteriores foram rodados em Portugal, em Lisboa (Alfama) e na Nazaré, e os interiores (mesmo os da “casa de fados”) em Paris, no Studio de Saint-Maurice. “Uns franceses vieram a Portugal fazer um filme e queriam uma pessoa que cantasse”, assim explica Amália o episódio, no livro Amália, Uma Biografia, de Vítor Pavão dos Santos (1987, reed. 2005). Escolheram-na a ela e depois, já com Amália por guia, andaram à procura de músicos. Contrataram Jaime Santos, Domingos Camarinha (guitarras), Santos Moreira (viola) e, por terem gostado do som potente da sua viola baixo, Joel Pina. E foram para Paris.

No filme, com os franceses Daniel Gélin e Françoise Arnoul e o britânico Trevor Howard nos papéis principais, Amália canta três fados: Foi Deus (no genérico), Barco Negro e Solidão, versões novas de Mãe Preta e Canção do Mar agora com letras feitas por David Mourão-Ferreira a pedido de Amália. E antes de Barco Negro há guitarradas, na falsa “casa de fados” recriada em Paris.

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Incidente com a actriz francesa relatado no Jornal do Brasil, em Agosto de 1956 DR

Por coincidência, o filme foi recém-reeditado em França, na colecção “La Séance”, numa edição de luxo com cópia restaurada em alta definição (inclui Bluray e DVD, além de um livro, postais da época e vários extras) e ligadas a ele há várias curiosidades: Françoise Arnoul ia sendo arrastada pelas águas bravas da Nazaré (Gélin socorreu-a, outros membros da equipa queriam segui-lo, mas o realizador travou-os e a cena ficou assim mesmo, na teia dramática do filme); o livro em que o filme se baseia, Les Amants du Tage, saiu no mesmo ano da rodagem, 1954; e o seu autor, o romancista e jornalista Joseph Kessel (1898-1979), membro da Academia Francesa, foi não só autor de dezenas de obras (algumas das quais levadas à tela, como Belle de Jour, por Buñuel, ou L’Armée des Ombres, por Jean-Pierre Melville) como também do Chant des Partisans, que viria a transformar-se no hino da resistência francesa. E aqui chegamos à II Guerra Mundial, que é por onde começa (com o final dela, a libertação) o filme que, a partir do Tejo, deu novos amantes do fado ao mundo.

CORRECÇÃO: Por um lapso de informação, agora rectificada, escreveu-se originalmente nesta crónica que Joel Pina tinha sido o primeiro viola baixo no fado, quando na verdade foi o responsável (e aí sim, pioneiro) pela popularização e integração regular deste instrumento nos meios fadistas. Assim, onde se lia Antes dele, não havia viola baixo no fado; depois dele, houve muitos outros baixos e até contrabaixos, mas a sua marca pioneira é ainda hoje inspiração e exemplo para sucessivas gerações​​”, passa agora a ler-se Antes dele, já havia viola baixo no fado, mas foi com ele que ela ali se popularizou. E a sua acção pioneira nessa integração regular da viola baixo no fado é ainda hoje inspiração e exemplo para sucessivas gerações.​​

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