O povo de Trump

O contacto de Frederick Wiseman com a respiração específica de uma cidade do interior americano: Monrovia.

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Uma América rural, tradicionalista, maioritariamente branca, tendencialmente envelhecida
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Nos últimos dez anos estrearam em Portugal três filmes de Frederick Wiseman, mas curiosamente todos eles, filmados na Europa (La Danse e Crazy Horse em Paris, National Gallery em Londres), configuram uma relativa “anomalia” na obra de um cineasta que anda há meio século a filmar a América, a decompô-la em parcelas, a observar o funcionamento das suas instituições, no mais lato sentido do termo. Nesse sentido, o Monrovia, Indiana, que agora estreia, está muito mais perto da “quintessência” wisemaniana do que qualquer um desses.

E estamos, então, em plena América rural, numa cidadezinha do Indiana com pouco mais de mil habitantes. Os planos iniciais, espécie de establishing shots perfeitamente típicos de Wiseman, dão o ambiente: campos de milho, tractores, vacas, porcos, e os homens e mulheres que trabalham nessas actividades agro-pecuárias. Só depois disso, que sugere explicitamente o fundamento económico da cidade, se chega aos primeiros planos urbanos — mas as imagens dessas actividades voltarão repetidamente, como pontuação entre sequências, mas também a sugerirem fortemente uma rotina imutável, um “tempo sem tempo”, que de algum modo se liga ao tom geral, se não mesmo ao sentido geral, do filme. Depois, Wiseman decompõe a vida da cidade: reuniões na igreja, o liceu, o supermercado, a barbearia, o cabeleireiro de senhoras, o veterinário, o bar e o restaurante, o armeiro (claro!) e, até, nas mais bizarras sequências (e também bastante divertidas, pelo aspecto deslocado de tudo aquilo), as cerimónias da loja maçónica local. Tudo aparentemente anódino, ou tudo realmente anódino, mas — e sempre sem qualquer espécie de comentário ou voz off — um mergulho eficaz no dia a dia de uma cidade, uma familiarização com os rostos, as conversas, as preocupações dos seus habitantes. Não seremos os mais aptos a julgar o carácter “exemplar” da cidade escolhida por Wiseman, mas o certo é que o contacto com a respiração específica desta cidade nos fornece um retrato do interior americano que valerá por mais do que apenas o caso particular de Monrovia.

Filmado nos primeiros meses de 2017, portanto nos primeiros após a tomada de posse de Donald Trump, tem-se tido a tentação — nada errónea, porque é o tipo de relação com a “actualidade” que Wiseman mais do que uma vez praticou — de ver Monrovia, Indiana em relação com esse momento temporal. Os habitantes de Monrovia correspondem, bem ou mal, ao esteréotipo associado ao “povo de Trump”: uma América rural, tradicionalista, maioritariamente branca (é muito raro ver um não-caucasiano nas imagens do filme), tendencialmente envelhecida (a maior parte das pessoas em quem a câmara de Wiseman se foca têm já uma certa idade). Mas, ao mesmo tempo, e isso é quase o outro leitmotiv para lá das imagens da agricultura, Wiseman está sempre a voltar às reuniões do conselho municipal da cidade, onde se discutem os problemas locais e se estabelecem projectos prioritários (instalação de bancos de jardim públicos, abertura de estradas, planeamento urbano, etc). É um velho fascínio de Wiseman, que já o filmou de diversas maneiras: a dinâmica do processo democrático, o diálogo, as negociações. A atenção a este aspecto é tão central no filme que não pode, obviamente, ser um acaso — e por contraste com o estilo autocrático e fanfarrão de Trump, o “comentário” é claro e bastante irónico: é como se Wiseman usasse o “povo de Trump” para fazer o elogio das coisas que o novel presidente mais abomina (democracia, diálogo, etc).

Também por isso, num filme que tem aquele sentido agudíssimo da rotina que apontámos acima, que lembra frequentemente as várias fases da vida, que começa numa escola e acaba num funeral (passando entre coisas por uma cerimónia matrimonial), aquele final seja bastante intrigante. Acabar com uma longa sequência de cerimónias corresponde ao retrato do ciclo vital que enforma todo o filme, sim, mas, e mesmo pensando que Wiseman raramente brinca aos “simbolismos”, talvez o que o cineasta ali filme seja mais do que apenas o enterro de uma pessoa. Em todo o caso, sem retórica nenhuma, a pulga fica atrás da orelha, num filme que ser das coisas mais brilhantes que Wiseman já filmou corresponde, em pleno, ao seu método e às suas preocupações.

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