Elas são modernas e não se queixam

As 11 mulheres mortas este ano são a demonstração de que o regime de protecção da violência doméstica não está a ser aplicado com a devida rapidez.

O artigo 29A do regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica e à protecção e assistência às suas vítimas determina “a realização de actos processuais urgentes de aquisição de prova que habilitem, no mais curto período de tempo possível, sem exceder as 72 horas, à tomada de medidas de protecção à vítima e à promoção de medidas de coacção relativamente ao arguido”. As 11 mulheres assassinadas desde 1 de Janeiro, por companheiros, ex-companheiros e familiares, são a demonstração de que este regime de protecção não está a ser aplicado com a devida rapidez. Mas o sistema judicial não é apenas lento a responder a estes casos.

A maioria dos 30 mil inquéritos que o Ministério Público abriu em 2018, por alegada violência doméstica, terá sido arquivada prosaicamente por isto: as denúncias não foram investigadas. Rui do Carmo, coordenador da equipa multidisciplinar para a violência doméstica, tem razão quando afirma que a “investigação tem de ir além do testemunho da vítima”. Caso contrário, corremos o risco de cair numa arbitrariedade muito duvidosa. Por que é que um colectivo de juízes do tribunal de Viseu considerou improvável que uma “mulher moderna, autónoma, não submissa, empregada e com salário” pudesse ser vítima de violência doméstica durante seis anos sem o denunciar?

Os juízes fizeram a sua escolha entre o depoimento de quem alegava ser vítima e o de quem negava ser agressor. O pouco moderno colectivo de juízes de Viseu foi obrigado pela Relação de Coimbra a refazer o acórdão, exigência acompanhada de um sermão: “Há situações que se prolongam no tempo em que, por mais cultos, sofisticados e independentes que sejam os intervenientes, as denúncias por maus tratos vão sendo adiadas, quer por vergonha quer por esperança em dias melhores.”

A violência exercida sobre as mulheres é culturalmente tolerada até nos tribunais (como se depreende de um lote razoável de decisões judiciais), transversal a todas as classes sociais (como se depreende de alguns processos em curso) e é inerente a todas as faixas etárias (mais de metade dos jovens portugueses confessam que já sofreram violência no namoro). A resposta não está na exigência de obrigar as vítimas a prestar declarações, como defendeu um grupo de procuradores, mas sim na capacidade de agir antecipadamente na aplicação de medidas de protecção e na devida investigação dos crimes. A lentidão da justiça será sempre mais estridente que o silêncio das vítimas.

Sugerir correcção
Comentar