O que Bernie pode ensinar à Europa

Proponho que deste lado do Atlântico lhe prestemos muita atenção. Porque a tudo o que nos dizem que é impossível na Europa nós deveríamos responder como Sanders.

O estado de onde vem o senador Bernie Sanders, o Vermont, é um dos menos populosos dos EUA. A sua maior cidade, Burlington, tem menos gente do que Leiria. A sua capital, Montpellier, não deve ser maior do que Rio Maior ou o Cartaxo. E no entanto a carreira de Bernie Sanders prova que para um estado assumir o topo da agenda política, mesmo numa federação como os EUA, não é preciso ser um estado grande nem rico: o que é preciso é saber ter as ideias de futuro que mais falam às pessoas de hoje.

Bernie Sanders é, em pessoa, um caso curioso. Não há nada que ele faça que seja como sugerem os cânones da política americana. Não conta a sua história. Não fala da família. Não menciona a religião. Bernie espera pacientemente e, quando lhe dão a palavra, é como se ligasse a ficha para falar de apenas uma coisa: propostas, propostas, propostas. Política, ideias, desigualdade, justiça e injustiça, a iniquidade que é um dos países mais ricos do mundo não ter um serviço nacional de saúde, o combate de uma vida contra a concentração de poder económico em “milionários e bilionários” porque esse poder económico é também poder político e tem garantido aos EUA um sistema corrupto instalado no Congresso e baseado no financiamento das campanhas eleitorais por interesses de grandes empresas privadas. Quando acaba o evento e as pessoas circulam, Bernie Sanders parece estar desconfortável. Não faz campanha de forma tradicional, nem parece que goste de a fazer. Não quer importunar as pessoas com apertos de mão e beijinhos, gosta de estar com as mãos nos bolsos das calças a um canto, afastando as abas do casaco demasiado largo. Mas se nos aproximamos e conversamos com ele qualquer coisa que não seja conversa fiada, o rosto abre-se e os olhos brilham, porque o que ele quer é falar de ideias e saber mais sobre o que tivermos para lhe contar.

Espanta, e ao mesmo tempo não espanta, que Bernie Sanders se tenha tornado um dos políticos mais populares dos EUA. Ele costuma contar que da primeira vez que se candidatou, como socialista democrático assumido num país onde o movimento socialista quase desaparecera, teve dois por cento. Bernie não desistiu, foi de novo à luta, voltou a candidatar-se. Teve um por cento.

A única garantia que os eleitores tinham — e a única de que precisavam — com Bernie Sanders era que ele nunca lhes diria nada em que não acreditasse. Parece simples, mas é infelizmente raro em política. Os políticos mais cinzentões dizem o que não acreditam porque não querem assustar ninguém. Os demagogos e charlatães dizem o que não acreditam porque querem bajular eleitores para melhor os enganar. Dizer sempre aquilo em que se acredita — ou, diferença subtil mas essencial, nunca dizer nada em que não se acredite — é uma estratégia arriscada. Só que aquilo em que Bernie acredita é simples e faz sentido, embora seja extremamente árduo. Resume-se assim: os EUA têm solução, mas essa solução tem de vir de uma revolução política na qual milhões de cidadãos comuns exijam as coisas que são do mais básico senso comum, como dignidade, liberdade, igualdade, um planeta com futuro e a capacidade de trabalhando não se cair na pobreza.

E é aqui que a estratégia de Bernie Sanders pode servir de ensinamento à Europa. Para ser ainda mais claro: aquilo de que a União Europeia precisa é, mutatis mutandis, aquilo que Bernie Sanders propõe para os EUA. Bernie Sanders poderia ter tido mais sucesso mais cedo se tivesse convencido toda a gente de que Washington era a fonte de todos os males, que um estado como o Vermont jamais poderia competir com potências económicas como a Califórnia e que a única hipótese dos cidadãos comuns seria entregarem-se às ilusões dos homens providenciais que dizem que vêm para destruir tudo. Ou seja, Bernie Sanders poderia ter tido mais sucesso mais cedo se aceitasse dizer as coisas que os eurocéticos de várias estirpes, incluindo da esquerda, dizem sobre Bruxelas, a UE e a suposta impotência dos cidadãos europeus.

Mas não é isso que Bernie diz. Bernie nunca nega os problemas de Washington, do sistema político ou do federalismo americano. Nunca deixa de os criticar e verberar quando necessário. Mas fá-lo colocando-se do lado das soluções. Ou da solução, que é sempre a mesma: democratizar. Contra a concentração de poder económico-político, redistribuir para democratizar a economia e legislar para tirar o dinheiro dos grandes conglomerados da política. Contra as desigualdades, democratizar o acesso à universidade e desendividar os estudantes para fazer voltar a funcionar o elevador social. Contra as injustiças raciais e a violências policiais, reforma do sistema criminal, que só se consegue em democracia, legislando. Os seus adversários, e até alguns dos seus aliados, gritam “socialismo!”. Que ideias dessas não pegam nos EUA, proclamam. E Bernie responde: se milhões e milhões de americanos as quiserem, como podem dizer que essas ideias não pegam? E até há pouco tempo, eles replicavam: mas milhões e milhões de americanos nunca vão querer. E a tréplica de Bernie era: ah é? Então deixem-me falar com esses milhões.

Bernie anunciou ontem a sua recandidatura à presidência dos EUA e eu não acho nada implausível que os norte-americanos que elegeram Obama e depois foram eleger Trump se juntem agora para eleger Sanders. Não só não é implausível, como já está a acontecer com os novos congressistas mais à esquerda que os EUA agora têm, que jamais teriam sido possíveis sem Bernie.

Acima de tudo, proponho que deste lado do Atlântico lhe prestemos muita atenção. Porque a tudo o que nos dizem que é impossível na Europa nós deveríamos responder como Sanders. É impossível uma Democracia Europeia? Se milhões de europeus a exigirem, ela terá de nascer. A União Europeia é irreformável? Aqueles que o proclamam padecem de um derrotismo antecipado que garantiria isso mesmo, mas a maior parte dos europeus achará do mais elementar bom senso que se a) não vamos destruir a UE e b) ela como está vai mal, a única solução é mesmo c) uma revolução política para a melhorar e refundar em pressupostos estruturalmente democráticos. Num país como Portugal não podem nascer as ideias que vão mudar a Europa? E então que diriam vocês de num estado como o Vermont nascerem as ideias que já estão a mudar a América?

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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