Karl, a lenda

Karl Lagerfeld é uma personagem criada pelo próprio e representa o arquétipo do criador de moda, na acepção mais histórica e tradicional do termo.

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CAROLINE SEIDEL/EPA

A notícia caiu como um verdadeiro meteorito: Karl Lagerfeld, o grande KARL, morreu. As reacções e homenagens surgiram de imediato. Não é caso para menos. Karl Lagerfeld era, provavelmente, a figura viva mais importante e universal da moda.

A sua ausência, no mês de Janeiro, nos tradicionais agradecimentos no final do último desfile de alta-costura da maison Chanel levantou o véu sobre o seu (crítico) estado de saúde, e muito se especulou sobre o assunto. A Chanel apressou-se a emitir um comunicado de imprensa, afirmando que Karl estaria apenas cansado. Cansado? Karl Lagerfeld? O homem que reinventou a Chanel na década de 1980 (tarefa nada fácil dada a herança patrimonial da sua antecessora e fundadora da casa, Gabrielle Chanel), que criava inúmeras colecções, desdobrando o seu ímpeto criativo e capacidade propulsora em diversas frentes, tão polémico quanto reverenciado? Karl Lagerfeld parecia ser imortal e incansável.

Em vida, alcançou o Olimpo dos deuses da moda. E porquê? Quem era, afinal, Karl Lagerfeld? A resposta a esta questão é complexa, senão inalcançável. Enquanto escrevo estas palavras, não consigo esquecer que nunca senti grande simpatia pela sua figura. Ia acrescentar enquanto pessoa, pois em relação às suas capacidades profissionais não há forma de as não admirar, mas depois percebi que não é possível analisar Karl Lagerfeld enquanto ser humano. Karl Lagerfeld é uma personagem criada pelo próprio e representa o arquétipo do criador de moda, na acepção mais histórica e tradicional do termo, o ser criativo que está acima de nós e a quem permitimos todas as excentricidades, até as de carácter.

O seu legado para a História da Moda é grande, tão grande quanto a sua personagem. E é inegável. Karl começou a sua brilhante carreira na década de ouro da alta-costura parisiense, em 1955, na maison Balmain; soube compreender como ninguém o seu tempo, e na década seguinte lá estava ele a traduzir a ortodoxia do mundo codificado da costura parisiense no prêt-à-porter. Nunca parou e nunca se deixou ultrapassar. Karl Lagerfeld era o mais célebre bastião vivo (e um dos últimos, a par com Emanuel Ungaro), a fazer a ponte entre o legado histórico da couture parisienne, esse mundo fascinante, elitista, onírico e, por vezes, indecifrável, e a moda contemporânea.

E Karl Lagerfeld moveu-se na mundanidade pop da moda dos nossos dias como ninguém. Recriou vezes sem conta os clássicos mais clássicos da Chanel, como a petite robe noir, as pérolas, os tweeds ou os sapatos bicolores, tendo o condão de manter a mística da marca sempre fulgurante ao mesmo tempo que sempre expressou livremente a sua própria criatividade. Afirmava que o seu trabalho não era fazer o que Coco Chanel fizera, mas sim dar largas ao que ela poderia ter feito.

Para Lagerfeld, a Chanel era sobretudo uma ideia que se pode reinterpretar indefinidamente. Sem nunca ficar agarrado ao passado, Karl Lagerfeld dizia que o respeito (mas não em demasia) e um pouco de humor eram indispensáveis para fazer viver uma lenda. E ele parecia saber fazê-lo melhor do que ninguém. E a maior prova disso mesmo é sua maior e mais indecifrável criação — Karl Lagerfeld, a lenda.

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