O Brasil de Bolsonaro é policial

Não se trata de diminuir a criminalidade. O objetivo é governar por intermédio do pânico moral do crime. E a maioria da população colabora.

“A polícia reflete a sua sociedade”, sentenciou e bem o sociólogo criminologista Robert Reiner em 1985 no importante livro As Políticas da Polícia. Em 2019, deparamos com o outro lado da moeda em muitos lugares do globo. É o caso do Brasil de Jair Bolsonaro, que espelha a sua polícia. Prova disso é o projeto de lei anticrime apresentado pelo ministro da Justiça, Sérgio Moro, no dia 4 de Fevereiro, visando o combate à corrupção, crime organizado e crimes violentos... através da violência. Moro propõe um pacote extenso de medidas.

Uma das mais comentadas foi a ampliação de uso da “legítima” defesa, o que vai contra normas do direito internacional. Se um uso excessivo da força policial decorrer de “escusável medo, surpresa ou violenta emoção, o juiz poderá reduzir a pena até a metade ou deixar de a aplicar”, diz o texto. O maior patrocinador da Lava-Jato autoriza formalmente a execução policial sem julgamento. É caso para dizer que a pena de morte cai nas ruas. Pensemos juntos.

Os polícias no Brasil já matam em média 14 pessoas por dia. “A polícia que mais mata e morre no mundo” virou o mantra da Amnistia Internacional e organizações de Direitos Humanos brasileiras.

Mas com uma diferença substancial. Enquanto entre 2016 e 2017 o número de agentes da lei mortos diminuiu em 15% (367 em serviço e 294 fora de serviço), a letalidade nas mãos da polícia aumentou 20% neste período, atingindo a descomunal cifra de 5144 pessoas. Em 2013, com as manifestações de Junho, foi dito e cantado que o gigante de 209 milhões de habitantes acordara.

Mas as últimas eleições vieram revelar que outro colosso estava prestes a se emancipar: as instituições policiais brasileiras. Não devido à eficácia ou oferta de melhores serviços à população. Mesmo sem uma base de dados unificada, especialistas apontam que a percentagem de crimes solucionados pela polícia no país oscila entre 4 e 8%, contra 80% na França e 65% nos EUA.

No anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública de 2013, 70% da população inquirida declarava não confiar nestas instituições. A exaltação belicista, portanto, clama pelo uso da força e licença para matar a qualquer custo.

Como chegámos aqui? Na transição para a democracia na década de 80, a esquerda não deu a devida importância à reforma da segurança pública. A direita ofereceu às forças policiais, sobretudo às Polícias Militares (PM), competência de cada um dos estados da federação, autonomia sem regulação. Hoje o que temos são ecos de um reformismo militante que não apenas não sensibiliza o Governo federal, como confirma, na figura do Presidente-capitão, seu alinhamento com os governos estaduais, independentemente de sua cor política.

À boleia de Bolsonaro foi eleito o quase desconhecido juiz Wilson Witzel como governador do Estado do Rio de Janeiro (PSC). Numa de suas primeiras declarações públicas, o governador afirmou que abriria valas comuns para os bandidos mortos pelas polícias em ações de combate ao crime.

Mesmo enfrentando a lei, que agora promete ser ressignificada por Moro, Witzel orienta os polícias militares a “abater bandidos armados”. A polémica “gratificação faroeste”, instituída em 1995 pelo então governador Marcello Alencar (PSDB), oferecia adicionais a polícias por “atos de bravura”. Um subentendido para atirar.

A recompensa ficou assim conhecida porque em apenas dois anos a taxa de letalidade policial dobrou. A recente promessa do governador fluminense já teve resultados. A 8 de Fevereiro teve lugar a ação policial mais violenta do Rio de Janeiro dos últimos 12 anos: a chacina do morro do Fallet-Fogueteiro, em Santa Teresa (região central). Treze foram assassinados pela polícia.

Hoje não há mais lugar para implícitos. O estado de São Paulo, campeão na letalidade policial e encarceramento no Brasil, não só não escapou como liderou a tendência.

Em pouco mais de um mês, o governador João Doria converteu a imagem soft e lânguida do prefeito-gestor rico em governador mano dura. Em Outubro de 2018 prometeu que, caso eleito, a polícia paulista atiraria para matar. Uma vez em funções afirmou em vários momentos que “quem enfrentar a polícia vai para o cemitério, não para a prisão”.

Polícias passaram a ser defendidos por advogados do estado quando necessário em face do “abate de marginais”. Tudo indica que o projeto de um PSDB humanista foi definitivamente sepultado por aquele que é hoje o Bolsonaro gourmetizado e o mais provável candidato à presidência em quatro anos. 

Da cidade de Suzano, município do estado de São Paulo com menos de 300 mil habitantes, surgiria o mais impressionante fenômeno do pleito. De arma em riste um assaltante surpreendeu várias famílias à porta de um colégio. Inesperadamente, vemos uma mulher puxar do seu revolver, atirar várias vezes à queima-roupa e imobilizar o sujeito que viria a morrer. O curto vídeo apreendido pelo sistema CCTV não foi intencionalmente fabricado para viralizar no Brasil e demais países da América Latina, mas retirou a policia militar em dia de folga, Kátia Sastre, do anonimato.

Em Maio, a “cabo mãe”, como ficou conhecida, seria publicamente homenageada pelo então governador Márcio França (PSB). Lançada a sua candidatura a deputada federal (pelo PR), usou à exaustão o vídeo. Esta seria a sétima mais votada do estado, juntando-se à chamada “bancada da bala”. O número de candidatos de fardas ao legislativo simplesmente quadruplicou entre 2014 e 2018. E nas anteriores eleições municipais, em 2016, 972 dos candidatos tinham perfil militar.

A fábula política da mãe PM veio a calhar. O populismo de Bolsonaro baseou-se na ideia de armar o “cidadão de bem”, capaz de defender o lar e a família. 12 de Maio era o dia das mães e, à porta do pacato colégio, Kátia declarou ter salvo a vida de muitas delas e de suas crianças.

A estética militar e policial atravessou toda a campanha. Bolsonaro foi filmado a ajudar uma criança a fazer o gesto de quem ostenta uma arma na mão, que se converteria em imagem de marca. Depois do atentado que sofreu, o candidato foi fotografado no hospital, debilitado mas reproduzindo o mesmo gesto. Não importa se mais de 90% dos estudos acadêmicos são contrários à tese de Jair Messias e de tantos outros, o lema “mais armas, menos crime” se impõe.

É que não se trata de diminuir a criminalidade. O objetivo é governar por intermédio do pânico moral do crime. E a maioria da população colabora. Quando consultados no referendo de 2005, 63,9% dos brasileiros votou a favor da comercialização de armas de fogo e munição em todo o território nacional. Mas a promessa legal de revogação do estatuto do desarmamento (lei de 2003) e a autorização do porte de arma de fogo é apenas o começo.

O amor pelas armas é muito mais do que um reflexo do fetiche made in USA nos trópicos. A lex talionis, promoção da rigorosa reciprocidade do crime e da pena, é uma conduta entre as polícias brasileiras há muito. A novidade hoje é assistir à sua legitima tramitação no Congresso. A democracia no Brasil, como em muitos países da América Latina, tem sido apelidada de violenta. Na nova era Bolsonaro e Moro, porém, o risco é que o Brasil rapidamente se transforme abertamente numa democracia belicista.

A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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