Rezar na igreja de Beyoncé, ou identidade, raça e género na segunda edição da bienal BoCA

Bienal de artes contemporâneas leva o coro Gulbenkian ao Lux e traz a Portugal novas criações de Angélica Liddell e Gerard & Kelly, bem como o uma antiga performance de Marina Abramovic. Lisboa, Porto e Braga recebem 52 artistas e 22 estreias mundiais.

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Pedro Barateiro apresentou a performance Como Fazer Uma Máscara esta segunda-feira no D. Maria II Miguel Manso

Celebrar Beyoncé como numa missa de empoderamento da mulher, receber de novo Marina Abramovic depois do matadouro, ouvir o Coro Gulbenkian interpretar Stockhausen no Lux. A segunda BoCA – Biennial of Contemporary Arts abre-se a 15 de Março renovando o convite para que dezenas de artistas nacionais e internacionais, consagrados e emergentes, molhem o pé noutras disciplinas. Neste cruzamento de artes plásticas e artes performativas, o semáforo tem todas as cores, identidades e géneros.

A programação da segunda edição da bienal nascida da mente e da direcção artística de John Romão foi apresentada esta segunda-feira no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, mas saltará não só para o Porto, como em 2017, mas também para Braga.

Em números, são 22 estreias mundiais e 15 estreias nacionais, trazidas a 20 espaços culturais em Lisboa, dos mais institucionais (como os museus) aos inesperados (como a cisterna da Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa), a outros dez espaços no Porto e ainda a mais sete em Braga, a ocupar por obras de 52 artistas desafiados a sairem das suas zonas de conforto. Nas palavras dos outros, a BoCA é de uma “ambição disparatada”, elogiou Rui Vieira Nery, director do Programa Gulbenkian Cultura; ou a “combinação absolutamente incrível entre rigor, reflexão, densidade, seriedade”, como enumerou Tiago Rodrigues, director artístico do D. Maria.

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John Romão esta segunda-feira na apresentação da 2.ª edição da BoCA MIGUEL MANSO

O conceito colaborativo que a BoCA propõe evoca, ainda que dois anos depois, um sentimento de frescura na solene sala que a acolhe pela segunda vez. Fala de hibridização, de fracturas, e ao mesmo tempo de juntar autores e criadores, ou de os separar das suas expressões artísticas habituais. “A nossa programação em 2019 coloca ênfase nas políticas de identidade, de raça e de género e continua a reflectir sobre as dimensões ritualista e do sagrado presentes na nossa contemporaneidade”, postula o director artístico a meio da longa apresentação. “Num tempo de identidades fracturadas, abraçamos a fragmentação e a partir dela tentamos configurar uma dramaturgia sobre a mulher”, diz John Romão. Aponta para Beyoncé Mass, por exemplo, da pastora e professora de teologia Yolanda Norton, que no final de Março estará na igreja anglicana de St. George, em Lisboa, para rezar no altar da superestrela, mostrando como a adoração religiosa de um ícone feminino pode falar de empoderamento, sobretudo das mulheres negras. Ou para o Gestuário II do Inmune – Instituto da Mulher Negra em Portugal, performance que se abaterá sobre os Maus Hábitos a 16 de Março. Ou ainda para Identidade Nacional (Príncipe Real), com os realizadores João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata a descerem ao Reservatório da Patriarcal, em Lisboa, para, agora numa instalação, recontextualizarem “os corpos [LGBT] que têm vindo a filmar”.

E porque não Spirit House, que Marina Abramovic inaugurou em 1997 no Matadouro das Caldas da Rainha? Tal como Shirtologie (1997), do coreógrafo francês Jérôme Bel, foi devolvida a Portugal na edição inaugural da BoCA, a peça da artista sérvia retorna pela primeira vez a Portugal, desta feita para estacionar nas Carpintarias de São Lázaro, em Lisboa –​ que funcionarão aliás como “ponto de encontro” geral das várias actividades da BoCA.

Quatro residentes

Identidade, género e raça são também visíveis na lista que resume as novidades que se juntaram esta segunda-feira ao programa preliminar que a BoCA já tinha anunciado em Novembro – uma nova criação da encenadora espanhola Angélica Liddell, Lo frío y lo cruel, que terá a sua única apresentação portuguesa em Braga, no Mosteiro de Tibães; a estreia do artista plástico Pedro Barateiro e do baterista de jazz Gabriel Ferrandini na encenação, com, respectivamente, A viagem invertida e Rosa. Espinho. Dureza, ambos no D. Maria. Marlene Monteiro Freitas, como fora também já anunciado, reagiu ao “desafio louco de fazer uma instalação”, como contou no palco do D. Maria: montará Cattivo – Instalação para estantes de partitura e outros materiais no Mosteiro de São Bento da Vitória, no Porto.

A bailarina e coreógrafa é uma de quatro artistas residentes na BoCA de 2019. A ela juntam-se Horácio Frutuoso e a sua nova criação, na Estufa Fria, de tributo a Helena Almeida (Biblioteca), e a artista plástica Diana Policarpo que “descolonizará práticas artísticas” em Total Eclipse, outra nova criação a mostrar a partir de 12 de Abril no Gnration, em Braga, sobre o trabalho de Johanna Byer, a primeira compositora a usar o ruído. Completam esta “relação poliamorosa”, como brincou John Romão, os norte-americanos Gerard & Kelly, que com State of vão da dança do varão ao movimento Black Lives Matter vislumbrado nos bailarinos do metro de Nova Iorque, para desembocar numa investigação sobre identidade, nação e América.

A segunda BoCA incluirá ainda, no Lux-Frágil, Stimmung, de Stockhausen, interpretada pelo Coro Gulbenkian (4 e 5 de Abril), Pajubá, de Linn da Quebrada, performer brasileira do território trans e queer (30 de Abril), além de Before I knew it, o concerto e DJ set do fotógrafo alemão Wolfgang Tillmans, no mesmo Lux, a 12 de Abril. A bienal coloca a vídeo-instalação The only possible city, de Meg Stuart, na Capela das Albertas do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), em Lisboa, ou a conferência Descolonizaaaaarte! de Joacine Katar Moreira, do Inmune, na Mala Voadora, Porto, a 15 de Março. Haverá conferências-performance do escritor Gonçalo M. Tavares, e intervenções do músico Adolfo Luxúria Canibal ou do bailarino e coreógrafo americano William Forsythe, que leva a instalação Alignigung ao MNAA, ao Museu Nacional Soares dos Reis e ao Museu de Arqueologia, no final de Abril. Mas a lista continua, e inclui nomes como a regressada Tania Bruguera, artista e activista cubana que em 2017 estreou no Porto uma encenação do Endgame de Beckett, o coreógrafo e bailarino Volmir Cordeiro, o artista plástico André Romão...

Dificuldades

Entre a primeira BoCA e a BoCA de 2019 passaram dois anos de actividade continuada, de itinerância de obras e encomendas, mas também se viveu um ano de contestação sem precedentes nas artes performativas portuguesas sobre o papel do Estado no fomento à criação – e 2018 viria a culminar com um manifesto de artistas plásticos. A bienal realiza-se na esteira dessa ebulição, com um orçamento global (incluindo estrutura e programação artística e educativa) de 450 mil euros, segundo John Romão, dos quais 40 mil euros foram atribuídos nos concursos de apoios pontuais.

O director artístico atenta ao PÚBLICO que a bienal se ergue sobre alicerces feitos de mecenas e parceiros, de financiamentos públicos vindos também das câmaras das três cidades que toca, de apoios institucionais de fundações como a PT, a PLMJ, a GDA e o Millennium BCP, além de contributos da Fundação Calouste Gulbenkian e co-produtores. Obteve ainda da Direcção-Geral das Artes apoios à circulação nacional e internacionalização, mas o regulamento actual obriga “uma bienal de artes que tem uma programação a uma escala nacional que extrapola uma cidade, duas, até três, a concorrer por uma só região e a um apoio que tem um montante máximo muito reduzido", lamenta John Romão. "Cria-nos imensas dificuldades e faz com que tenhamos de compilar outros apoios, trabalhar muito com instituições privadas e parceiros internacionais para viabilizar as nossas actividades." 

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