Em Munique, nada de novo

Tal como a Europa está a viver momentos de tensão no seu próprio modelo de integração, a NATO atravessa igualmente uma fase de alguma turbulência

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LUSA/RONALD WITTEK
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1. Tal como Davos é, quase todos os anos, um razoável espelho do estado do mundo económico e político, Munique desempenha o mesmo papel para as grandes questões de segurança e defesa internacional. O Fórum Económico Mundial realiza-se em Janeiro. A Conferência de Segurança de Munique está a decorrer desde sexta-feira. Apesar do clima de tensão entre a Rússia e o mundo ocidental, Sergey Lavrov não se dispensou de comparecer, mantendo a tradição criada desde o fim da Guerra Fria. Foi, aliás, em Munique, em 2007, que Vladimir Putin deu o tiro de partida para a sua estratégia revisionista de relação com o mundo, denunciando o alargamento da NATO como um acto de hostilidade em relação à Rússia e pondo em causa os tratados de não-proliferação. Na altura, pouca gente lhe deu a devida atenção. No ano seguinte, invadiu a Geórgia. O vice-presidente americano Mike Pence está presente, como estão vários ministros europeus para além da chanceler alemã. A Europa está, obviamente, na berlinda.

2. O ambiente de segurança europeu mudou radicalmente nos últimos anos, com a entrada em cena de Donald Trump e a sua política de subversão do seu modelo de integração, que os EUA ajudaram a construir desde o fim da II Guerra. É uma mudança demasiado radical. A Rússia, de eventual parceiro estratégico, passou a ser vista como uma ameaça estratégica sem qualquer pudor ou hesitação em intervir em países europeus que fazem fronteira com a Aliança Atlântica e com a União Europeia. Não se vê o menor indício de que essa política não seja para continuar. Tal como a Europa está a viver momentos de tensão no seu próprio modelo de integração, a NATO atravessa igualmente uma fase de alguma turbulência, causada pelas interrogações que pesam sobre a sua coesão, o seu futuro e as suas missões, criada a partir da eleição de Trump. Presente nem Munique, o senador republicano Lindsey Graham, da velha guarda transatlântica, deu as garantias do costume: a Rússia “veio reforçar a NATO”; os EUA “continuam comprometidos” com ela; “a melhor maneira de prevenir a guerra é a dissuasão”; e, finalmente, “não se preocupem com a América.(…), eu próprio já disse ao Presidente que o melhor investimento na política externa americano foi a NATO”. Nas palavras do vice-presidente americano, o habitual pragmatismo americano foi um pouco mais brutal. Pence atribuiu a Trump o mérito de ter obrigado os aliados a aumentar as suas despesas militares. “Ao renovar a força militar e económica da América, (…) também está a liderar os nossos aliados da NATO”. Mas a peça-chave do seu discurso foi a insistência junto dos europeus para que abandonem o acordo nuclear com o Irão. Pence esteve em Varsóvia com o secretário de Estado americano Mike Pompeo numa conferência internacional destinadas a mobilizar os aliados contra o Irão. A presença da Europa Ocidental foi muito discreta, tirando brilho e eficácia ao encontro. Até os anfitriões polacos, os maiores amigos de Trump nos dias que correm, rejeitaram dissociar-se da posição europeia.

3. Na sexta-feira, abrindo os trabalhos, o secretário-geral da NATO, Jens Stoltenberg, resumiu a situação com uma frase certeira: a Aliança tem de melhorar a sua capacidade para “gerir a incerteza”. E isso exige “um forte quadro multilateral, uma defesa forte e uma forte cooperação transatlântica. (….) ajudando a reduzir o risco e a lidar com surpresas quando elas acontecem, e elas vão acontecer…” Fala enquanto secretário-geral da organização e a sua obrigação é manter a aparência de uma frente unida. No terreno, a NATO continua a funcionar com um elevado grau de coesão. No cenário dos Bálticos, onde está envolvida na missão de dissuasão de qualquer aventureirismo por parte de Moscovo, mas também, por exemplo, no Afeganistão. Ainda na semana passada, o Governo alemão prolongou por um ano a presença das suas tropas em Cabul, no âmbito da missão da NATO. A cibersegurança foi elevada à categoria de prioridade dos aliados, acompanhando os tempos. Em Munique, mas também em Bruxelas ou em Paris, a desinformação levada a cabo através dos media sociais, sobretudo a partir da Rússia, começa a causar algum pânico. Ontem, a chanceler fez-lhe uma menção muito forte, dizendo que a ameaça desta “guerra híbrida por parte da Rússia pode ser sentida todos os dias, em todos os países europeus”. Foi ao ponto de mostrar estranheza com a súbita pujança do movimento dos jovens dos liceus contra a falta de resposta às alterações climáticas – com forte expressão na Alemanha -, saudando-os mas, ao mesmo tempo, questionando os seus inesperados apoios. O anterior secretário-geral da NATO, o dinamarquês Anders Fogh Rasmussen, advertiu para o mesmo perigo já nas próximas eleições europeias: “Não é uma guerra ideológica por parte da Rússia, não é uma campanha de esquerda ou de direita, mas uma campanha que visa minar a credibilidade e a confiança e induzir o caos e a instabilidade.”

4. Sem a presença de Macron, coube a Merkel o discurso em nome da Europa, que pronunciou ontem de manhã, repetindo, aliás, o guião de Davos: uma defesa apaixonada do multilateralismo – um mosaico, como ela disse, cujas pedras estão a desconjuntar-se rapidamente. Mas as perguntas que se lhe seguiram colocaram-na na defensiva. Teve de justificar o apoio à construção do Nord Stream II, o gasoduto da Gazprom que liga directamente o território russo ao alemão, contornando a Ucrânia, que irrita os americanos mas também a maioria dos seus parceiros europeus. Teve de defender a meta de 1,5 por cento fixado pelo seu Governo (em lugar dos 2 por cento estabelecido pela NATO ainda no tempo de Obama) para a despesa com a Defesa prevista para 2024, alegando que a melhor maneira de medir esse esforço talvez não seja a percentagem do PIB. Teve de reconhecer que a Alemanha leva demasiado tempo a tomar decisões em matéria de política externa. Teve de explicar a sua tíbia resposta às ideias europeias de Macron com o desejo de manter unidos todos os países-membros da União. A chanceler não foi além daquilo que tem dito nos últimos tempos, reflectindo algum imobilismo perante uma realidade europeia que se deteriora rapidamente.

5. Foi também nas respostas às perguntas da audiência que Merkel tocou na ferida que mais preocupa o governo alemão neste preciso momento: uma guerra comercial com os EUA. Percebe-se porquê. A Alemanha é a maior potência exportadora do mundo; a sua economia está a abrandar mais rapidamente do que estava previsto. A chanceler disse que tinha orgulho nos carros alemães e que não era culpa sua que se vendessem tão bem nos EUA. Lembrou que a maior fábrica da BMW estava na América e não em Munique. O Departamento de Comércio americano vai divulgar nos próximos dias um relatório sobre se as importações de automóveis e das respectivas peças colocam um risco para a segurança nacional americana. É esta a desculpa que Trump tem utilizado para contornar as regras da OMC e que já justificou as tarifas sobre a importação do aço. Se sim, pode impor uma tarifa de 25 por cento nos carros importados da Europa, na sua esmagadora maioria alemães. A imponente torre da BMW ergue-se não muito longe do local da conferência. Com as nuvens negras do “Brexit” a adensarem-se sobre a economia alemã, são dois choques externos no mínimo preocupantes. E que se vão repercutir nas economias europeias. De resto, citando Ulrike Franke do European Council on Foreign Relations, não havia a esperar grande coisa desta conferência de Munique. Nem um confronto com a Rússia para além do que já existe, nem a renovação da aliança transatlântica, nem o anúncio de novas iniciativas europeias. “O Ocidente precisa de limpar primeiro os seus problemas internos antes de começar a pensar estrategicamente sobre a sua posição internacional – por mais urgentes que estas questões possam ser.”

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