Stefan Hertmans: “Há culpa na arte, há culpa onde há beleza. Mas perseguir a beleza é bom”

Stefan Hertmans demorou trinta anos a abrir os cadernos de memórias que o avô lhe deixou. Neles encontrou a biografia de um homem que perseguiu a beleza carregando culpa e também o registo do fim de um tempo. Guerra e Terebintina fala de transcendência, mas não é religioso.

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Daniel Rocha

Pouco antes de morrer, em 1981, Urbain Martien, flamengo, 90 anos, deu ao neto os cadernos onde, ao longo de anos, foi anotando as  memórias. Ex-soldado na I Guerra, ex-aspirante a pintor, amante de música, católico devoto, viveu a infância e juventude em extrema pobreza e ficou órfão cedo, depois da morte do pai, restaurador de quadros e frescos de igrejas. Urbain fez a guerra e voltou a uma normalidade que deixou de lhe ser possível. O neto recebeu esses cadernos e guardou-os quando na memória tinha outra oferta do avô, a metáfora do trauma e da culpa. Tinha 12 anos quando recebeu o relógio de família, deixou-o cair no momento em que o segurou e ele partiu-se no chão diante dos seus olhos e dos do avô. Ainda não podia entender o significado daquele acidente. Só quando, 30 anos depois, abriu os cadernos pôde finalmente conhecer o avô e um tempo.

Após o choque, escreveu um livro que desafia as fronteiras entre géneros e tem uma grande proximidade com a poesia. Realidade e ficção, ensaio e memória, com ressonâncias de W. G. Sebald, uma deriva  que ganha uma rota bem definida ao narrar a guerra e o horror, e voltar a vaguear por múltiplos registos no modo como conta a história de um amor trágico, ou a busca de uma transcendência quase religiosa.

Guerra e Terebintina é o título deste romance multi-premiado que projectou o flamengo Stefan Hertmans. Poeta, ensaísta, romancista, ex-professor e pesquisador, 67 anos, o neto de Urbain Martien gosta que não acreditem em tudo o que escreve.

Guerra e Terebintina é contaminado por muitas artes. Há literatura, música, pintura, poesia... Isto, numa história sobre guerra que é também biografia, autobiografia, memória, ensaio...
E hagiografia, a vida dos santos. Estudei literatura e talvez por isso estou  atento e alerta para uma coisa: o que é um romance? Um romance é tudo o que faço.

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Guerra e Terebintina é o título do romance multi-premiado que projectou o flamengo Stefan Hertmans, poeta, ensaísta, romancista, ex-professor e pesquisador, 67 anos Daniel Rocha

Também faz poesia.
Sim, e faço poesia no romance. Estou a pensar em Julian Barnes e no livro sobre o luto e a morte da sua mulher [Os Níveis da Vida, 2013]. Perguntam-lhe: “Mr Barnes, isto ainda é um romance?” Ele respondeu: “Romance é o que faço”. Estou a citá-lo quando digo o mesmo. O romance é uma forma muito híbrida. O que fiz neste livro e no livro que se segue sobre uma rapariga judia no século XI é a hibridização do romance. E o livro que estou a escrever ainda é mais híbrido. Há capítulos completamente literários e outros totalmente jornalísticos. E quero que esse choque se sinta. Aqui esse contágio é fluido. Interesso-me muito pela teoria do romance, mas o leitor não deve sentir isso. Não deve teorizar. Este livro é difícil de definir enquanto biografia ou autobiografia. Sim, é um livro sobre arte.

Para mim, escrever um romance não é apenas escrever um livro como as pessoas aprendem nos cursos de escrita. Aprende-se a fazer uma bela tapeçaria como os grandes mestres fizeram. Não gosto do tipo de livros a que se chama romances bem escritos. Aos romances do século XIX, e com todo o respeito por muitos, prefiro Virginia Woolf, prefiro a crise do romance.

Porquê?
Porque o autor já não é um deus, mas parte do problema. O narrador deve fazer parte do problema. Filosoficamente falando, é uma coisa interessante de se fazer. O mesmo no cinema. Gosto de filmes onde o realizador mostra que não está num lugar estável. Gosto muito do modo de contar história em também existe a meta-história. Um bom romance deve ser um meta-romance, um romance onde estejam presentes as possibilidades do romance, não de uma maneira seca ou pedante ou dada a teorias, mas que continue a seduzir e torne o leitor curioso e emocione.

Venho de uma geração educada na universidade com Heiner Muller, Samuel Beckett, tudo contra a emoção. Quando li Peter Handke foi uma libertação enorme: ler Handke, que disse aos da geração anterior que tinham perdido a arte da descrição, que não sabem o que é escrever. Adoro essa ideia. Muitas vezes interrogo-me acerca do que Handke anda a fazer, mas ele, para mim, é como Holderlin. Sai do paradigma. Ser escritor e não apenas escrever um livro; é também ter esta questão em mente: “o que é um romance?”. A partir daí, divirto-me. 

Indo às possibilidades deste livro: é uma reflexão acerca do tempo. 
O tempo de uma vida, sim. O tempo existencial.

Mas também o modo como o tempo passa pelos lugares e os transforma.
Sim, a cidade como  palimpsesto. Esta ideia tem sido muito importante para mim desde que publiquei o meu livro sobre cidades, em 1991 [Intercities], no qual tento descrever como as cidades mudaram desde a queda da Cortina de Ferro, em 1989. Fui a cidades em que ninguém estava interessado no tempo da  Europa comunista, como Bratislava ou Leipzig. Ninguém ia lá. Foi daí que trouxe a ideia de que as cidades são palimpsestos, são textos com partes que foram sendo apagados, e construir um novo edifício no mesmo lugar é como apagar um palimpsesto, e é preciso aprender a ler o texto da cidade. E ler o texto de uma cidade é ler os documentos da cidade. Podemos também olhar para fotografias. Fotografias do mesmo lugar. Por exemplo, Lisboa em 1910, 1950, 2000 e 2019. O que mudou num lugar? Isto pertence ao tempo humano. Não é um tempo universal. É o tempo particular, o tempo íntimo, o tempo de um indivíduo.

Mas contar a história do seu avô estabelece a relação entre o tempo pessoal e o tempo dos lugares. O tempo íntimo e o modo como ele se manifesta no espaço público. Como é que o tempo de uma cidade como Ghent pode ajudar a entender o seu tempo pessoal?
Ghent é a minha cidade natal, mas há vinte anos que me mudei para um bairro de Bruxelas e acho que não posso voltar a viver em Ghent. Mas por ter ido embora, estou constantemente a escrever sobre a cidade porque Ghent se tornou na minha cabeça uma cidade imaginária. Tendo a pensar em Joyce. Começou a escrever sobre Dublin porque estava longe, exilado em cidades fantásticas, e sentiu nostalgia da Dublin cinzenta e chuvosa, e fez de Dublin a cidade que conhecemos em Ulisses. Precisamos de distância para essa transformação de uma cidade; precisamos de uma distância íntima para ver a nossa cidade. Escrevi sobre Ghent por ser a cidade do meu avô, a cidade da minha juventude e que na minha infância era como Liverpool, uma cidade industrial cinzenta. Era pobre, agora é rica, é chique, moderna, progressista, é tudo o que se quer de uma cidade emancipada. É uma cidade cheia de flores e muito cara. Não poderia comprar agora a casa onde vivi. É uma cidade completamente diferente daquela que conheci. Isso sente-se logo nos cheiros. 

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Quando um dia Stefan Hertmans abriu as memórias ao avô, ex-soldado na I Guerra, pôde finalmente conhecê-lo e conhecer um tempo. Após o choque, escreveu este livro que desafia as fronteiras entre géneros e tem uma grande proximidade com a poesia e ficção, ensaio e memória Daniel Rocha

E não é por acaso que escreve tanto sobre cheiros.
Conhece a teoria de Proust, a da memoire volontaire/memoire involontaire? Ver, provar, ouvir são sensações muito voluntárias, mas cheirar é completamente involuntário. Não nos podemos proteger de um cheiro, atinge-nos o nariz. Neurologicamente falando, o odor convoca os neurónios mais profundos, estimula a memória mais do que qualquer outro sentido. Nessa perspectiva sou muito proustiano, acho que tenho de descrever o que cheirava quando era criança, os cheiros da vida. E o odor muda com o tempo, há uma diferença enorme entre aquela época e a que cheiramos agora. Tive de reconstruir a cidade do meu avô, não apenas a que conheci quando fui para a escola aos cinco anos...

Sabe, daria milhões para ser capaz de, por um dia, fazer o que fazia quando tinha cinco anos e olhar à volta: o que havia lá em 1960, como eram as pessoas, como se vestiam, como falavam, como tudo cheirava. Isso sempre me fascinou. Recriar a cidade foi tentar encontrar a intimidade dos cheios na vida do meu avô.

Como escritor sou bastante obcecado por coisas que desaparecem. Tento escrever sobre elas de forma não nostálgica, porque um escritor nostálgico é um mau escritor. Não devemos ser nostálgicos, mas abertos para pensar o que desaparece. Por isso falo de palimpsestos. E este livro é um palimpsesto sobre a minha cidade natal. Isto significa que ao escrever um livro sobre o meu avô não pude simplesmente criar uma cidade imaginária. Primeiro tive de morrer na minha autobiografia e depois ir além do meu próprio nascimento.

E tudo nasceu de uma espécie de testamento, os cadernos que o seu avô lhe deixou e só abriu muito anos depois sem saber o que continham. Foi um choque?
É verdade, quando li aquelas notas fiquei muito comovido. Chorei. Estava em lágrimas. Eu não tinha ideia do que lá estava. Pensava que sabia. Tinha as minhas recordações. Vivíamos três gerações na mesma casa. Para mim o meu avô era uma pessoa romântica, estava sempre a falar da guerra, fez descrições como as que descrevo no livro, falava da pintura. Ele estava a sonhar na minha companhia. Era um avô de sonho. O que eu sabia sobre a guerra era apenas aquilo que ele queria que soubéssemos. E o resto, o que ele não queria que soubéssemos ou não queria contar, escreveu. A pergunta mais difícil é: porque é que ele escreveu? Para quem?

Tem respostas para isso?
Acho que escreveu  para ele mesmo. Não para uma audiência, não para um público, não à espera que um dia alguém fizesse um livro com aquilo. Não, só para si mesmo, para superar o  trauma. Naquele tempo não havia psicoterapia para gente como ele. Eles regressavam da guerra, tinham visto os amigos morrerem com a barriga aberta, a chorar, e voltavam à sociedade civil e davam a mesma resposta que as pessoas que tinham regressado do Holocausto. “Não falo porque ninguém iria entender, mesmo se eu contasse.” Não se pode imaginar. Eles estavam sozinhos com aquele trauma. E acho que ele nos contava tantas histórias, as triviais, para ter respostas, já que toda a gente perguntava. Mas a verdade é que era uma coisa entre ele e as notas. Não sei porque as deu a mim. Eu ainda não era um escritor. Só publiquei o meu primeiro livro seis meses depois da sua morte. Esperaria que eu fizesse alguma coisa com aquilo? Acho que não. 

Ele deu-lhe pela segunda vez o que tinha de mais precioso. Primeiro um relógio de família que você deixou cair e se partiu. Muitos anos mais tarde, as memórias...
Sim, ele deu-me o seu tempo duas vezes. É incrível! Dezoito anos depois. Eu tinha doze anos quando me deu o relógio e tinha 30 quando me deu os cadernos. Quando os li, pensei: “Meu pobre avô, nunca te conheci. Vivi contigo e achei que te conhecia, mas nunca nos contaste estas coisas”. E assim se percebe a solidão dos seres humanos. Era um homem que sonhava com a beleza, mas estava partido por dentro. 

Descobriu-o nesses cadernos.
Sim. 

E teve uma reacção imediata.
Comecei a escrever praticamente no dia seguinte. Estava quase em pânico. Como podia ter deixado passar 30 anos sem abrir os cadernos?! Fiz imediatamente muitas notas, depois pus imagens nas páginas, numerei as páginas. E ele escrevia com uma letra tão compacta que muitas vezes não tinha espaço para pôr o número. Era como uma impressão, uma caligrafia muito bonita.

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Daniel Rocha

A tinta preta ou a azul?
Variava. E quando já estava a ficar um pouco cego com cataratas, as frases pareciam linhas ao vento. Parou de escrever no fim do segundo caderno; chegara ao fim da guerra e veio de imediato Maria Emelia.

A história de uma paixão.
Talvez seja piroso, mas foi exactamente como escrevo no livro: na última página há marcas das lágrimas dele. Ele terminou em 1979, ou 1980. Começou em 1963. Isto não foi escrito de um fôlego, não foi impulsivo; foi compulsivo. A dada altura vi uma palavra um pouco apagada, e ele nunca tinha apagado uma palavra. Ao longo de dois cadernos nunca apagara uma palavra. Esse é para mim o grande sinal de trauma de guerra vivido num silêncio mortal, que 50 anos depois da guerra  tenha começado a escrever sobre ela sem ter de reescrever uma palavra. É impensável! E tão terrível. Tudo devia estar na sua cabeça, ele só teve de escrever. Mas também significa que escreveu muito devagar. Nos dias em que estava melancólico, escrevia, porque quando estava um pouco triste não conseguia pintar. Pintar era para ele um acto de alegria. E a minha mãe dizia: “Não o perturbes. Ele está a escrever. Hoje está triste.” É a solidão de um sobrevivente. E envelhecer é ver um mundo à volta desaparecer; cada vez mais pessoas que se conhecem morrem. Quanto mais se vive mais sozinho se está enquanto testemunha de algo que desaparece. Mas há um detalhe para mim importante no fim do livro: na noite em que ele morreu disse à minha mãe “hoje morro muito feliz”. E isto é acerca da força dos seres humanos. 

Falou da dificuldade de encontrar um tom para o livro. Mas começa por ter referências a W. G. Sebald. Ele foi um guia?
Sim, mas antes de mais quis passar tudo a computador. Era um manuscrito tão impressionante. E queria que o nome dele estivesse na capa, não o meu. Urbain Martien. Vejam, que soldado! Mas o neerlandês evoluiu, modernizou-se de tal maneira que o leitor moderno não iria gostar de ler aquele flamengo antiquado. Num século, o flamengo transformou-se enormemente, não seria boa ideia. E esse é o momento em que entro em crise, uma crise de lealdade. A minha lealdade para com ele. Iria eu brincar ao escritor literário com aquilo? Achava que fazer isso não era digno, literalizar aquele trabalho. A minha primeira interrogação foi essa. Sentia-me culpado por brincar ao escritor com um documento daqueles. Falei com o meu editor, um velho amigo, e ele disse-me que achava que sim, que eu tinha de fazer isso, que eu tinha de encontrar uma maneira. Comecei então a escrever um livro enorme sobre o meu avô, a biografia de um soldado. Foi quando pensei que não, que ninguém estava à espera de um Charles Dickens flamengo. As pessoas queriam aquele testemunho. Só quando percebi que tinha de me assumir como narrador é que pensei em Sebald. 

E o que significou pensar em Sebald?
Mostrar a subjectividade da história e não a objectividade. Tenho dito a mim mesmo que não estamos no tempo de Marguerite Yourcenar ou no tempo de Thomas Mann, ou de qualquer outro romancista histórico. Eu não quero ser um romancista histórico, não tenho nada a ver com isso. Não quero que o leitor acredite no que estou a dizer; quero que ele comece a pensar sobre o que estou a dizer. Enquanto narrador sou uma personagem do livro. Não sou o autor-deus, recuso-me a ser o autor-deus; sou o autor-personagem; estou envolvido no livro, salto para a água, nado com as minhas personagens. Isso faz toda a diferença na nossa cabeça, mesmo moralmente. Eu sou o sujeito que não é suposto saber. É uma grande mudança, também quanto à ética da autoria. Quando percebi isso senti-me livre e o livro voou, num mês estava pronto. Mas eu tinha estado a escrever durante anos. Tinha 800 páginas de manuscrito. Fui para Dubrovnik e comecei a escrever. O meu editor disse-me para começar com a primeira memória dele, que não começasse com o seu nascimento, porque quando se começa com o nascimento há uma cronologia estúpida a seguir até à morte. Quando me disse para me lixar para a cronologia o meu avô nasceu [enquanto personagem]. E eu tinha um ponto de vista que podia ir em todas as direcções. Mas ao mesmo tempo foi interessante ter a cronologia subjacente. Porque vamos do nascimento à morte, mas com a descontinuidade na narrativa e com o baixo contínuo da cronologia. Aí encontrei o prazer da escrita. Se há coisa que odeio é a previsibilidade. Talvez tenha a ver com o meu carácter. Gosto de ser surpreendido e também de ser surpreendido por mim mesmo. 

Divide o livro em três partes. Na primeira, há um narrador na primeira pessoa que vai descrevendo o método de escrita, a génese do livro, o modo como foi à procura de uma voz que o guiasse. A tal influência de Sebald. Na segunda, continua a haver um narrador na primeira pessoa, mas o estilo remete para Erich Maria Remarque, que cita em epígrafe. É o momento da guerra, a história do horror. Como foi dar vida a uma guerra que não foi a sua?
A segunda parte é onde me sinto mais próximo do meu avô. Na primeira, segui o conselho do meu editor que me disse para não voltar a abrir os cadernos, que escrevesse de memória. É por isso que posso ser muito descontínuo ao contar a sua juventude e a preparação para a guerra. Mas na segunda parte, abri os cadernos desde o primeiro dia de guerra e comecei a escrever, voltando cada página, e reescrevi tudo na minha linguagem. Quando digo que é nessa parte que me sinto mais perto dele é porque o eu da primeira pessoa é ele.

Agora fala-se muito de apropriação cultural, que não posso escrever um livro sobre um negro porque isso é ser colonialista. É uma discussão  difícil. Na segunda parte tentei não viver essa apropriação; era ele. Mas na primeira e na terceira partes apropriei-me do meu avô. Aí sou eu enquanto criança pela mão dele, a lembrá-lo. Na segunda parte é ele sozinho. Foi assim que cheguei ao tríptico do livro. Isso foi bom, o tríptico é uma peça de altar. Então vamos fazer o livro como uma peça de altar. Ele era tão católico, tão devoto. Era a vida dele. As suas três partes da vida. Criança, soldado, e na vida a seguir. 

Onde há uma história de amor trágico, a tal onde entra uma rapariga chamada Maria Emelia.
Uma história de amor tão terrível porque a rapariga se parece com a mãe dele e ele estava profundamente apaixonado pela mãe. E a rapariga era do mesmo tipo, o que acontece muito com rapazes que têm um amor edipiano pelas mães; procuram uma mulher que seja uma cópia trinta anos mais nova do que a mãe. Quando essa rapariga morre, é também a mãe a morrer no futuro. Psicologicamente falando, isto é muito complexo, e destrói-o completamente. Mas com isso ele deu-me a oportunidade de explorar no livro a discussão entre cópia e ser copista, ser um autor original ou um pintor. A mãe dele era o original, e Maria Emelia era a cópia, mas a cópia tinha mais valor do que o original, porque na cópia o original começou a ter uma nova vida. A sua esperança de, no futuro, ser um pintor original, um amante original e um ser humano original é destruída com a morte de Maria Emelia. Como se a sua expectativa de ganhar uma identidade fosse morta. Uma coisa horrível. E acho que foi o motivo pelo qual nunca se superou. Quando tinha 90 anos, no dia 1 de Novembro, o Dia de Todos os Santos, ele rezou e chorou pela rapariga. Lembro-me de que quando a minha avó Gabrielle era viva, iam lá os dois rezar, o que para a Gabrielle não era muito simpático [Gabrielle era irmã de Maria Emelia]. Acho que quando se ama alguém de forma tão apaixonada o pior que se pode fazer é procurar alguém que seja uma cópia. É melhor ir atrás de alguém completamente diferente. E Gabrielle deve ter sentido isso. A minha indiscrição ao falar de sexo entre aquelas duas pessoas é porque acho que ela não era realmente frígida, mas que sabia, como uma mulher sabe, que talvez o marido estivesse à procura da irmã quando a queria sexualmente. E isso uma mulher deve sempre recusar. Era uma mulher muito amistosa e ingénua. Eles eram muito simples. Mas a ingenuidade não significa que não se entende a vida. Por vezes acho que as pessoas sofisticadas percebem menos da vida do que os ingénuos. 

Outro tema presente é o sentimento de culpa. A sua culpa, a culpa do seu avô, e o que chama culpa da natureza ou natureza culpada. 
É uma questão complicada. O meu avô sentia-se culpado em relação ao pai. A descoberta, por parte dele, da pintura que o pai fez dele quando trabalhou em Liverpool é um eco da minha descoberta dos seus cadernos. Sentimo-nos culpados porque não entendemos o legado daqueles que nos precederam. A natureza, a vida e a civilização impõem-se tão cedo e só entendemos alguma coisa muito mais tarde. Talvez a primeira forma de culpa tenha a ver com a nossa iniciação; sermos pais, por exemplo aos 20 ou 25 anos... é tão cedo! Ser iniciado na existência é a primeira culpa. Hegel disse que a coruja de Minerva só voa no crepúsculo. É sempre muito tarde quando a coruja de Minerva chega; só voa no fim do dia. É uma imagem fantástica, só no fim da nossa vida entendemos o início. Nessa altura, o meu avô sentiu-se culpado em relação ao pai, doente, que morreu jovem. Depois há, decerto, a culpa do sobrevivente. Mais uma vez, como sabemos das pessoas que voltaram do Holocausto, todos se sentiram culpados porque estavam vivos. Deve ter havido qualquer coisa nele como essa em relação à guerra. E depois há a minha culpa que está presente na alegoria do relógio. Quando faço leituras públicas deste livro, no fim digo: aqui está o reparo do relógio. A minha culpa é um eco da culpa dele. É também a culpa do sobrevivente e a de alguém que tem de contar o que lhes aconteceu. Nessa culpa, claro, tocamos na culpa de Kafka; a culpa que Joseph K sente no fim de O Processo, quando lhe vão cortar a cabeça: “era como se a vergonha lhe quisesse sobreviver.” Uma frase terrível e uma das mais clássicas da literatura moderna. Porque é que ele estava envergonhado? Porque era judeu, porque era um intelectual, porque estava sozinho, porque tinha falhado no amor, havia tantas coisas pelas quais Kafka podia sentir-se culpado. Mas há quase uma existência fenomenológica: culpa pela literatura. E depois há a culpa pelo esquecimento, e a culpa pela vida e a natureza continua a existir. Esta forma de culpa foi nomeada por um poeta na Holanda, chamado Armando [1929-20118], um grande poeta. Ele escreveu muito sobre a guerra e viu a natureza como culpada. Viu Shoah, de Lanzmann? O horror e depois que belas são as florestas à volta, que bonitas são as flores. Estive em Buchenwald, que fica numa encosta, e as pessoas que trabalhavam na indústria da morte podiam ver as flores e os pássaros. Isso é a natureza culpada. A natureza simplesmente continua, não se importa. Esta é a grande questão do que chamam Teodiceia, a decadência de Deus. Será possível que exista um Deus quando vemos aquilo? E remete-me para a revolta de Sade, se isto é o que a natureza faz então que se lixe a natureza. Se ela nos lixa, nós lixamo-la. É uma filosofia do mal; uma filosofia que vem do choque de saber que a natureza é culpada. 

Descreve aqui o fim de um tempo, e de uma forma que lembra Stefan Zweig em O Mundo de Ontem, o livro sobre o fim de outro tempo, o que antecedeu a II Guerra Mundial. Teve-o em mente...
Absolutamente. É a primeira pessoa que me fala nisso. Lembra-se de como ele descreve, no início do livro, as senhoras no jardim com as sombrinhas, e os cavalos e as carruagens e toda agente feliz, e é um belo dia de Agosto? Estava literalmente a pensar nisto quando descrevi uma em que é 4 de Agosto, e o meu avô está a bater à porta numa pequena rua. É aí que a vida dele pára. E depois há outra era. Foi a cena de Stefan Zweig que me fez citar algumas vezes no meu trabalho uma frase terrível de Victor Klemperer [1891-1960]. Ele, um filologista de línguas românicas, judeu, um simples intelectual, nota como todos os dias os nazis lhe estão a retirar coisas. Até que a dada altura ele é proibido de apanhar o comboio, depois é proibido de se sentar nos bancos de jardim e depois tem de usar a estrela amarela. Dia a dia, ele acrescenta uma coisa aos seus cadernos e é insuportável ler aquilo hoje. Um dia, vão-lhe buscar o canário e ele chora, porque já não é permitido aos judeus ter animas de estimação. Ele sobrevive, mas de que forma? Escreve esta frase terrível: “a contemporaneidade não sabe nada.” Esta frase é como um martelo na minha cabeça. 

Está a escrever?
Estou a escrever, a tentar criar beleza, como o meu avô. E ao tentar escrever sobre beleza volto a sentir culpa, porque produzir beleza torna-nos culpados, porque há sempre uma razão para não produzir beleza. Por isso há culpa na arte, há culpa onde há beleza. Mas perseguir a beleza é bom.

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