O Berloque de Esquerda

Nos próximos meses, manter António Costa à distância certa vai ser uma tarefa árdua. Bloco ou Berloque, eis a questão.

Há tempos um dos meus filhos estava a tentar comentar uma notícia do Telejornal e enganou-se a pronunciar o nome do Bloco de Esquerda – chamou-lhe “Berloque de Esquerda”. A expressão é óptima, e fiquei encantado com o talento involuntário do miúdo para a política, capaz de transformar o tropeção numa palavra numa magnífica análise do panorama partidário português em 2019. Afinal, o que tem sido o período 2015-2019 se não a lenta transformação do incisivo Bloco de Esquerda no decorativo Berloque de Esquerda, como a violenta carta de saída de 26 militantes desiludidos (incluindo Sérgio Vitorino e dois manos de Francisco Louçã) vem agora tão bem demonstrar?

E sabem o que é mais interessante naquela carta? É que é tudo verdade, enquanto denúncia de uma cisão ontológica entre aquilo que o Bloco é e aquilo que ele diz ser. Uma e outra coisa nunca coincidem na perfeição, nem em partidos, nem em pessoas, mas no caso do Berloque de Esquerda a distância começa a ser demasiado grande, e nem todos os militantes têm a elasticidade necessária para tão exigente espargata. É o caso dos 26 signatários da carta, que finalmente se deram conta de que o partido revolucionário e radical em que eles militavam sucumbiu à influência moderadora do PS e ao desejo (perfeitamente legítimo e saudável, sublinhe-se) de ocupar um lugar no governo da nação.

Como é óbvio, para concretizar esse desejo de poder é preciso fazer compromissos, e os verdadeiros radicais não fazem compromissos. Por isso, os 26 signatários afirmam a necessidade “da clarificação política entre uma esquerda com um projecto radical para a sociedade e outra paliativa em que o resultado da sua acção é a integração no sistema que deveria combater”. Denunciam “o caminho de institucionalização dos últimos anos” que obrigaram o partido ao “tacticismo de decisões” e ao “jogo da comunicação na sua forma burguesa”. Um tacticismo que tem naturalmente levado o Bloco a “abdicar de posições claras”, com destaque para “a questão da renegociação da dívida externa, que era central e incontornável com o governo anterior”, e que agora foi “transformada em mero pormenor retórico que não perturba o apoio a um governo que perpetua a austeridade”. Tudo isto é verdade e já foi dito muitas vezes pela direita – tem muito mais graça quando é confirmado pela esquerda.

É particularmente divertido ver ex-militantes do Bloco acusarem o partido de varrer “o projecto revolucionário para debaixo do tapete, numa tentativa de ganhar respeitabilidade”, e não lhe perdoarem a adopção de um “conformismo fatalista que transforma o capitalismo no único sistema possível e a sua alternativa socialista em utopia alucinada”. A carta – que, de resto, é consequência natural de uma moção apresentada no último congresso, intitulada “Um Bloco que não se encosta” – mostra basicamente que o Bloco se encostou. Ou seja, que o Bloco de Esquerda se transformou, para grande infelicidade destes militantes, no Berloque de Esquerda. Um berloque que eles não querem usar.

A médio prazo, esta atitude pode ter uma consequência curiosa: o aparecimento de novas formações de esquerda radical, em mais uma fragmentação do espectro partidário português, só que agora na ponta oposta. Ainda que por enquanto seja apenas uma hipótese teórica, ela pode ser suficientemente forte para marcar a estratégia dos partidos à esquerda do PS. Nos próximos meses, manter António Costa à distância certa vai ser uma tarefa árdua. Bloco ou Berloque, eis a questão.

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