Expulsão de ex-cardeal por crimes sexuais sugere que para o Papa não há intocáveis

Vaticano fez de Theodore McCarrick, antigo arcebispo de Washington – acusado de abusos a menores e adultos – o primeiro cardeal destituído do sacerdócio em quase cem anos. Decisão antecede cimeira sobre encobrimento da Igreja a crimes sexuais.

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Theodore McCarrick foi acusado de crimes sexuais contra menores e adultos Reuters/GREGORY A SHEMITZ

Já ninguém é intocável. Parece ser esta a mensagem enviada este sábado pelo Papa Francisco para dentro e para fora da Igreja Católica, depois de o Vaticano ter anunciado a expulsão de Theodore McCarrick do sacerdócio, em vésperas de uma cimeira inédita que juntará mais de 150 líderes religiosos em Roma para debater os abusos sexuais e o seu encobrimento no seio da Igreja.

Acusado de crimes sexuais contra menores e adultos, ao longo de décadas, o ex-cardeal e arcebispo de Washington D.C., nos Estados Unidos, tornou-se no primeiro detentor de uma posição de topo na hierarquia católica, em quase cem anos, a ser reduzido ao estado laico.

Aos 88 anos, e depois de já ter sido despojado do título de cardeal em Julho passado, na sequência de uma denúncia, com quase 50 anos, de abuso sexual a um rapaz de 16 anos, McCarrick perde o direito de se auto-intitular padre, deixa de poder celebrar sacramentos e fica privado de todos os benefícios financeiros e de habitação que gozava por pertencer à Igreja.

“Há poucos meses era cardeal, hoje é o Sr. McCarrick. É uma humilhação inimaginável naquele mundo [da Igreja Católica]”, garante ao Washington Post Davide Cito, advogado e especialista em Direito Canónico da Pontifícia Universidade da Santa Cruz, em Roma.

McCarrick havia sido notificado da decisão do Papa no início de Janeiro e apresentou recurso. Mas este foi rejeitado na quarta-feira pela Congregação para a Doutrina da Fé. Através de um comunicado, este sábado, o Vaticano revelou que o “Santo Padre reconheceu a natureza definitiva” da decisão, pelo que já não poderá ser alvo de recurso.

Segundo o comunicado, o ex-cardeal foi julgado e considerado culpado por práticas “pecaminosas com menores e adultos” e por “solicitação” – um crime que o Vaticano define como uma situação em que um padre comete um acto imoral e abusivo com um penitente durante a confissão. Ambos os crimes, diz a Igreja, têm a agravante de terem sido resultado de circunstâncias de “abuso de poder”.

Decorrem ainda investigações independentes nas dioceses de Nova Iorque, Metuchen, Newark e Washington, onde McCarrick serviu e se tornou numa das vozes mais proeminentes da Igreja Católica nos EUA.

"Quase revolucionário"

Os casos de padres e funcionários eclesiásticos expulsos e suspensos das suas funções, por denúncias de crimes sexuais, tornaram-se comuns. Mas desde a renúncia ao cargo do cardeal francês Louis Billot – devido a ligações ao movimento político de extrema-direita Action Française –, em 1927, que nenhuma figura de topo da Igreja Católica era desapossada do seu estatuto. E no que toca à expulsão por abusos sexuais, o caso de McCarrick é mesmo uma estreia.

Kurt Martens, professor de Direito Canónico na Universidade Católica da América (Washington), vê na decisão contra McCarrick uma tomada de posição “quase revolucionária” do Papa Francisco. “Bispos e antigos cardeais deixaram de ser imunes ao castigo e a reverência do passado deixa de se aplicar”, disse o académico ao New York Times.

“É um momento sísmico, uma mensagem clara. O #MeToo​ chegou à Igreja”, escreveu no Twitter Austen Ivereigh, biógrafo do Papa. 

Há muito pressionado a aplicar a sua visão mais progressista do papel da Igreja à denúncia de abusos sexuais por membros do clero, Francisco assumiu publicamente a sua determinação em identificar e condenar este tipo de crimes no Verão do ano passado – pouco depois de um ex-núncio nos EUA o acusar de ter tido conhecimento das acusações contra McCarrick há cinco anos, e numa altura em que se atropelavam na comunicação social relatos de encobrimento das autoridades eclesiásticas a abusos sexuais nos EUA, no Chile, na Irlanda e na Austrália.

Numa carta aberta, em Agosto de 2018, o Papa admitiu “vergonha e arrependimento” pela forma como a Igreja lidou com estes crimes e pediu a ajuda de todos os católicos para eliminar “esta cultura de morte”.

Foi imbuído por esse sentido de missão que o chefe da Igreja Católica convocou mais de 150 líderes das conferências episcopais de todo o mundo para um encontro, que se realizará entre os dias 21 e 24 deste mês, no Vaticano, e onde serão discutidas estratégias para responder a um dos maiores flagelos dentro da instituição. 

O anúncio do castigo a McCarrick a menos de uma semana da cimeira inédita não parece, por isso, tratar-se de uma mera coincidência. “Francisco entende claramente que o abuso sexual é um abuso de poder. E não poderia ter enviado um sinal mais claro que este”, afiança Ivereigh.

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