Se a neve não cai leve, levemente, pinta-se a serra de quartzo, certamente

Arouca lança este sábado um novo programa de percursos interpretados na aldeia da Castanheira, onde a serra da Freita deu ao mundo as ímpares pedras parideiras. O tema do primeiro mês é a neve – e outro branco que a substitui na paisagem.

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Adriano Miranda
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Nem todos conhecerão os versos de Augusto Gil que, tantas vezes repetidos por algumas gerações, se tornaram uma cantilena ritmada de domínio quase público, entoada sem música só pela prazer da rima e assim tornada anónima, como que expropriada de direitos de autor. O poema começava insinuante: “Batem leve, levemente, / como quem chama por mim. / Será chuva? Será gente? / Gente não é, certamente, / e a chuva não bate assim”. Seguiam-se outras estrofes com indícios delicados e, antecipando uma conclusão algo triste, desvendava-se então porque se chamava o poema Balada da Neve. Eram esses flocos de branco que batiam na vidraça do poeta e foram eles que inspiraram também o novo programa de visitas interpretadas que este sábado se inaugura em Arouca, no planalto despojado da serra da Freita, em plena aldeia da Castanheira. 

O primeiro dos ciclos mensais do projecto “Castanheira+” é dedicado à neve, mesmo que ela não esteja por lá estes dias, e foi pensado para diferentes públicos: este sábado, por exemplo, os guias do Geoparque de Arouca promovem o circuito C+ Famílias, que dará a conhecer “O Inverno na Castanheira”, e no dia 23 de Fevereiro seguir-se-á o C+ Kids, com um atelier sobre “Ciência da Neve” no Radar Meteorológico de Arouca. Nomenclaturas à parte, a protagonista será sempre a aldeia da Castanheira, com os campos cultivados da sua envolvente, o radar que lhe rasgou a tela do céu, muros de pedra-puzzle sem argamassa, macias vacas arouquesas a ruminar em passeata calma, gatos que dormem em grupo sobre telhados de lousa ou colmo, cães magrinhos e calorosamente reguilas, ribeiras de água irrequieta e cristalina, centeio fofo em fartas madeixas louras e, claro, essas ímpares pedras parideiras que podiam ter-se formado em qualquer outro lugar do mundo e escolheram existir apenas neste planalto sereno, quase intocado.

Os outros protagonistas destes circuitos serão as dez pessoas que vivem na aldeia e, por inerência, as memórias que partilham com quem as cumprimenta ao caminho e lhes pergunta sobre a sua vida. Foi dessas conversas, aliás, que os técnicos do município retiraram grande parte dos conteúdos que agora partilham com os visitantes de outras paragens. E é tal o contacto entre os poucos habitantes da terra e a equipa que trabalha mesmo ali ao lado, na Casa das Pedras Parideiras, o centro interpretativo instalado desde 2012 numa antiga casa da aldeia, que a geóloga Alexandra Paz sabe perfeitamente quem gosta de dar dois dedos de conversa com os forasteiros, quem se deixa fotografar com vetustos fardos de palha na cabeça e quem não autoriza de maneira nenhuma que os seus maravilhosos e envolventes olhos azuis sejam captados pelas câmaras para depois circularem sem rei nem roque por essa Internet fora.

Pedra Parideira é a expressão popular para o Granito Nodular da Castanheira, só observável nessa aldeia e apenas numa extensão de 1 km2. De tom claro, a pedra-mãe vai “parindo” pequenas rochas pretas, à base de biotite, quartzo e feldspato. Adriano Miranda
Pedra Parideira é a expressão popular para o Granito Nodular da Castanheira, só observável nessa aldeia e apenas numa extensão de 1 km2. De tom claro, a pedra-mãe vai “parindo” pequenas rochas pretas, à base de biotite, quartzo e feldspato. Adriano Miranda
Pedra Parideira é a expressão popular para o Granito Nodular da Castanheira, só observável nessa aldeia e apenas numa extensão de 1 km2. De tom claro, a pedra-mãe vai “parindo” pequenas rochas pretas, à base de biotite, quartzo e feldspato. Adriano Miranda
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Pedra Parideira é a expressão popular para o Granito Nodular da Castanheira, só observável nessa aldeia e apenas numa extensão de 1 km2. De tom claro, a pedra-mãe vai “parindo” pequenas rochas pretas, à base de biotite, quartzo e feldspato. Adriano Miranda

O passeio pode adoptar vários trajectos, mas a impressionar tem sempre a serra, em todas as direcções do horizonte. A geóloga leva-nos por caminhos onde há canastros tradicionais ainda cheios de milho, deixa-nos espreitar as vitelas no curral, aponta-nos pedras forradas de musgo e, entre um passo e outro, conta-nos que as referências mais antigas às pedras parideiras surgiram nos registos de um padre do século XVIII, quando essas formações geológicas ainda não eram conhecidas como únicas e se tratavam com descaso, “como se andassem é a estorvar”. Hoje, como antes, continuam, no entanto, a servir de matéria-prima às construções da aldeia e a compor os muros que distinguem os seus diversos campos de cultivo, ainda dedicados a uma agricultura de subsistência da qual se retira milho, centeio, couves, batata, feijão e o que mais a terra aceitar.

Pelo planalto atravessado pela rota PR15, flores também há, algumas até raras e bem delicadas, como as “cucas” ou “martelinhos” (Narcissus cyclamineus), cujos bolbos “os antigos apanhavam para vender a dez escudos em molhos de 100”. Foi tal o excesso de colheita que a espécie está agora classificada como em perigo de extinção e gera autêntico entusiasmo quando um dos seus exemplares desponta mínimo entre ramos com cicatrizes dos incêndios dos últimos anos. Ainda que raras no planalto, melhor vêem-se as árvores: Alexandra Paz aponta-nos os castanheiros que deram nome à aldeia, ainda essa não tinha as estradas que só aí chegaram pelos anos 1970; mostra-nos também o carvalhal com espécimes de negral e alvarinho que ajudam a compor um dos pouquíssimos bosques do povoado.

Só quando a geóloga nos dá água para verter sobre os líquenes Lasallia pustulata – cujas bolhas ilusoriamente fofas mudam de cor em contacto com o líquido e no passado ajudavam a criar pigmento violento – é que nos lembramos de perguntar pela neve que inspirou o passeio e ainda não vimos nem tocamos. É certo que não está assim tanto frio, mas olhamos em redor na expectativa de encontrar vestígios dela e ao longe identificamos pequenas manchas brancas dispostas pela encosta como que à espera do degelo. Mas o entusiasmo dura pouco porque a guia logo nos desengana, para revelar algo mais interessante: aqueles são depósitos de quartzo e, assim expostos ao céu, testemunham quanto a terra já foi fértil no minério que ainda nos anos 1940 e 50 dava sustento às famílias da aldeia. Se noutras zonas de Arouca a exploração mineira exigia mais complexos e profundos cuidados para acesso ao volfrâmio que ingleses e alemães expediam para a II Grande Guerra, na Castanheira os filões de quartzo afloravam à superfície e era sob a luz plena do dia que os homens partiam pedra para recolher o minério mais alvo e o vender depois aos produtores e revendedores de cerâmica.

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Adriano Miranda

Manuel Tavares tem 72 anos e é desse tempo. Já viveu em França e em Moçambique, mas foi na Castanheira que se fez gente a extrair quartzo com um compressor a gasóleo e conta histórias dessa época a quem lhe pedir essas memórias. “Ia à noite descarregar a pedra a Matosinhos e de lá eles mandavam-na para Inglaterra”, recorda. “Pesavam-na sem báscula, ia directa para os barcos e eu andei nisso muito tempo, até sair daqui para França, sempre a pé, para fugir à guerra colonial”. O relato dá muitas voltas, cobre muitas paragens, inclui até uma aula sobre milho-rei, rainha e raposo, e só acaba quando é hora de o ex-militar ir guardar as vacas. Despedimo-nos gratos, entre o respeito por uma vida tão diferente e a inveja por semelhante imunidade às (tão prementes quanto vãs) angústias da cidade.

Antes do regresso, paramos a ouvir o silêncio, só cortado pelo vento e por ténues e longínquos chocalhos. A dona Belandina é um ponto minúsculo ao longe, não lhe vemos o rosto enrugado sob a carga de secos que traz à cabeça para a cama dos animais. Quanto é que aquele fardo pesará? O senhor Manuel ainda nos faz o cálculo à distância antes de ir à sua vida. “Aquilo? É coisa levezita. Não leva mais que 20 ou 30 quilos”, diz ele. E não era uma piada.

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