A história de um lugar e das suas gentes cabe toda no menu do Ti Choa

Repositório da tradição culinária da ilha Terceira, nos Açores, este restaurante é também uma espécie de museu vivo da gastronomia local. Há fornadas de pão à sexta-feira, molho de fígado, alcatra regional e doce de vinagre. Tudo com muito amor e carinho.

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Falar do Ti Choa como apenas um restaurante, uma casa de refeições, é redutor e simplista. Este é um daqueles lugares que tem sempre muito mais do que aquilo que nos oferece à vista. Da casa onde está instalado ao mobiliário e objectos que lhe preenchem as paredes, até às propostas culinárias, tudo tem uma história e encanto particulares. Falam da vida e das gentes do lugar, e isso é que o torna único e encantador.

A ementa é a da cozinha local, com o contexto e tradição que lhe são próprios. E é assim que propõem ao cliente degustar morcela, alcatra regional, torresmos de cabinho e molho de fígado, como especialidades base da cozinha de tradição das zonas rurais da Ilha Terceira. Assim são confeccionadas e assim são servidas, e foi assim que o Ti Choa se converteu numa espécie de local de romagem, não para locais mas também para os forasteiros à procura da identidade e produtos locais.

O expoente é à sexta-feira, quando o velho forno de lenha que se mantém numa das paredes da sala ganha vida e se renova. A fornada começa logo de manhã com o amanho da massa, segue com o aquecimento do forno e culmina com a abertura da porta e retirada do pão, pelas 19h, quando a sala já está repleta de clientes ávidos pelo pão quente, queijo, manteiga e marmelada, tudo de confecção local.

Também a alcatra ou as copiosas feijoadas são vagarosamente cozinhadas no forno a lenha. Não se pense, no entanto, que tudo é uma encenação ou recriação episódica de tempos antigos. Essa é antes a essência deste acolhedor restaurante e tudo ali está como se o tempo tivesse sido congelado. Com esmero e muito carinho, que é o que logo se revela em todos os pormenores. 

A par da degustação de pratos regionais, as propostas no dia da visita da Fugas incluíam também costela e fêvera de porco, bife de novilho, espadarte grelhado e filetes de abrótea. Com o esclarecimento de que apenas a chouriça não era confeccionada na casa, a degustação desfilou com pedaços de morcela de sangue e de chouriça de carnes, acompanhadas de pão de milho em fatias, torresmos do cabinho, molho de fígado e alcatra regional.

Saborosa e crocante a morcela com arroz e boas gorduras a derreterem-se em sabor. Já com as carnes mais secas os torresmos do cabinho. Costela de porco descarnada pela metade (a parte do osso que fica funciona como uma espécie de cabo, o tal cabinho) que se come à mão com o delicioso acompanhamento de um bolinho de farinha de milho.

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No molho de fígado, em cubinhos com molho de cebolada, há também pedaços de carne que coze em gordura, ao estilo dos rojões, a dar o sabor e consistência que conjuga com a textura macia da batata-doce. Já a alcatra regional, que coze muito lentamente no forno numa marinada de vinho tinto regional, carnes húmidas e suculentas protegidas pelas capas secas que ficaram expostas ao calor e sem contacto com a marinada. Acompanha com arroz e batata cozida. Os preços ficam sempre abaixo dos 10€, com excepção da alcatra, que é servida em dose dupla (18€). Na proposta conjunta de degustação regional o preço é de 10,50€ por pessoa, sendo servidas as quatro especialidades.

Como complemento provaram-se também os filetes de abrótea (9,90€). Filete alto do lombo com lascas alvas, húmidas e saborosas, cobertas por um fino polme de farinha de milho a dar um sabor e textura de crocância rústica de belíssimo efeito. Muito bons!

Além do doce Dona Amélia (0,90€), que é um símbolo da ilha, é também obrigatória a prova do Doce de Vinagre (2,60€). Derramado sobre a fervura do leite, o ácido concentra o lácteo que se mistura com ovos e forma um saboroso conjunto de textura grumosa polvilhado com canela.

Para finalizar, há um licor de amora que simboliza na perfeição a arte e carinho com que tudo é feito e a comprovar que, mais que um restaurante, o Ti Choa é uma espécie de cuidadoso museu da gastronomia e etnografia locais. Do rigor com que tudo é confeccionado à decoração e à preservação da casa, que nos permite recuar no tempo e perceber como funcionava a vida e economia do lugar. E até o nome, que acaba por representar a vida dos locais e o permanente fenómeno da emigração.

Emigrado para a América em meados do século passado, a vida não correu de feição ao Ti Choa, que acabou ajudado pelos irmãos no regresso à terra natal. Em tempos em que os serões eram ocupados no largo da igreja ou na berma da estrada, onde a mulheres se juntavam a fazer renda, destacavam-se os contadores de histórias. Ti Choa trazia muitas daquele novo mundo, que contava com arte e engenho e sempre terminava com o interrogativo tique americano com a palavra sure (certo?). É claro que com pronúncia açoriana, soando à palavra “choa” que lhe haveria de dar a alcunha.

É a casa do Ti Choa que acolhe agora este restaurante que, ao amor e carinho na preservação dos objectos e tradições, junta também a memória vida da gastronomia. 

 
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