Não lhes peçam para ir apanhar sol

Continua a haver um enorme estigma quando se fala de doença mental. Por isso, quem sofre com ela prefere calar-se. Assim, pelo menos, evita ouvir os mesmos conselhos paternalistas que já ouviu tantas vezes.

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Daniel Rocha

Quando lhe perguntaram se se importava de dar uma entrevista ao P2 falando da sua doença mental, Cláudia Sampaio, uma das dez artistas que integram o projecto Manicómio, respondeu que estava disponível. “Acho que devo fazê-lo. Tenho quase a certeza de que as pessoas não conseguem perceber que há vários tipos de problemas mentais e que nem toda a gente é lunática e vive noutro planeta.” Por isso, é importante falar.

Uma das coisas que quer dizer é esta: se a virem num momento mau da sua doença, não lhe digam que “precisa de apanhar sol” ou que “vá ao cinema” ou que “tente fazer ioga”. Se fosse assim fácil, ela sairia do buraco negro em que se encontra naquele momento. Se não o faz, é porque é totalmente incapaz de o conseguir — pelo menos sem ajuda da medicação que agora toma e que a ajuda a manter-se equilibrada.

“Ouvimos esse tipo de coisas inúmeras vezes na vida. Ou então falam comigo como se estivesse a fazer uma birra. Habituei-me a desistir de tentar explicar. Pensas que ou eles passam pelo mesmo e sabem do que estou a falar, ou nunca vão perceber”, afirma.

Continua a haver um enorme estigma em relação às doenças mentais. “Parece que só as doenças físicas é que são consideradas doenças. Um cancro é horrível, mas as pessoas têm de perceber que uma doença mental pode ser tão devastadora como outras, só que é mais silenciosa. Por causa desse estigma, as pessoas não falam.”

Por isso, hoje ela quer falar. “Assumo, sim, tenho um problema, tomo medicação. Antes, quando falava nisso, havia pessoas que me diziam para deixar de tomar os comprimidos, porque não serviam para nada. E eu desatava a chorar, faziam-me sentir como se eu estivesse errada. Estava errada por ter uma doença?”

Agora consegue ver as coisas de forma diferente. “Não é vergonha ter uma doença que não escolhi.” Mas se, como aconteceu no passado, tivesse de procurar emprego, saberia assumir que não seria uma opção. “As pessoas não vão confiar em mim, porque pensam que vou desaparecer de um dia para o outro ou começar de repente a ser maluca. Mas, no meu caso, sei quando estou estável ou não. Antes de tomar esta medicação, era um pesadelo, não sabia o que tinha e porque é que sofria tanto.”

O que é uma pessoa normal?

Como se fala pouco sobre o assunto, a maioria das pessoas não sabe que o espectro das doenças mentais é muito vasto. Sandro Resende, o mentor do projecto Manicómio, explica que “a doença mental vai desde a depressão à esquizofrenia” e defende que é muito importante ultrapassar todo o estigma a ela associado – é o que ele tenta fazer integrando os doentes em ambientes de trabalho e retirando-os do contexto hospitalar.

Não há, neste momento, em Cláudia o mais pequeno sinal de que sofre de uma doença mental. Fala pausadamente, trabalha, faz uma vida normal e explica, pacientemente, o que sente quando está mal. “Sou uma pessoa completamente normal com a diferença de que tenho uma descompensação que me faz sentir as coisas de forma muito exagerada. Mas o que é uma pessoa normal? Acho que não conheço ninguém normal.”

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Da esquerda para a direita: Cláudia R. Sampaio é poeta e desenhadora; Pedro Ventura escreve contos e faz fotografia e vídeo; Anabela Soares faz escultura e trabalha com barro

Só quando já era adulta é que tomou consciência de que alguma coisa não estava bem. “Sempre que tinha um problema, não sabia lidar com isso e o mundo acabava. Oscilava entre isso e o oposto, a euforia, querer tudo num dia, de repente era muito intenso. É um distúrbio de personalidade, um desequilíbrio químico.”

O que acontece nas fases más é que “a pessoa deixa de querer viver”. É diagnosticada como tendo um distúrbio quando esta oscilação de emoções lhe afecta a vida de forma grave. “No início é um choque. O que é que significa ter um problema? Parece que nos estão a diagnosticar uma espécie de cancro na cabeça.”

Afectar a vida de forma grave é isto: “Não consigo falar com as pessoas, não consigo sair à rua, comer, tomar banho, não consigo pentear-me, vestir-me. Chegas a um ponto em que a dor é tanta que já não estás aqui. Podes morrer, porque já não estás aqui.” É nessa altura que não adianta alguém dizer-lhe que devia apanhar sol, ir ao cinema ou fazer ioga.

Tal como Cláudia quer falar, também o escritor Valério Romão, seu amigo, decidiu escrever sobre o assunto numa crónica recente intitulada “Deixem-me vos levar pelas mãos até ao sítio das perguntas” e publicada pelo Hoje Macau: “Não tendo nunca feito alarido do meu regime químico, nunca fiz questão de o esconder. Não tenho vergonha de depender de comprimidos para ter uma vida minimamente normal.”

Quando lhe perguntam o que acontece quando tenta parar de os tomar, responde: “Acontece a merda inominável de cada posição do plano existencial valer exactamente o mesmo que qualquer outra.” Vale a pena ler a crónica toda, mas fica aqui a (uma) conclusão: “Querem ajudar um doente mental? Não sejam paternalistas.” Apanhar sol não os vai salvar.

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