Uma vitória póstuma de Kiki Pires de Lima

Um acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos que é uma vitória para todos os advogados e uma merecida homenagem a Kiki Pires de Lima.

Joaquim (por todos conhecido como Kiki) Pires de Lima foi um notável advogado de Cascais que morreu em 26 de Março de 2017. Bem conhecido por todos os que advogavam na barra dos tribunais, era um adversário temível, inteligente, truculento e criativo. (Para quem o queira conhecer, aconselho a excelente entrevista de Anabela Mota Ribeiro (em https://anabelamotaribeiro.pt)

Após o 25 de Abril de 1974, Kiki propôs uma acção defendendo a ilegalidade e inconstitucionalidade da obrigatoriedade da inscrição na Ordem dos Advogados – ganhou na 1.ª instância mas veio a perder em recurso. A primeira condenação de Portugal no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH), em 1984, no caso Guincho contra Portugal, por violação do direito à justiça em tempo razoável, deve-se a Kiki Pires de Lima e, na data da sua morte, tinha pendente no TEDH uma queixa contra o Estado português por violação da liberdade de expressão. Neste caso, não era o advogado no processo: era ele próprio o queixoso e quem o representava era o advogado Ricardo Sá Fernandes.

No dia 1 de Março de 2007, Joaquim Pires de Lima tinha dirigido uma participação ao Conselho Superior da Magistratura (CSM) visando o juiz num processo, afirmando que o comportamento do juiz não fora imparcial, tendo favorecido a empresa ré e o seu sócio gerente, referindo factos concretos que, no seu entender, revelavam uma conduta “grosseira e parcial”. Para Pires de Lima, era evidente que havia um conluio entre o juiz em causa e a empresa ré e o seu gerente com o intuito de os favorecer e prejudicar a sua cliente e por isso mesmo pedia ao CSM a abertura de um inquérito e de um processo disciplinar contra o juiz dado que, no seu entender, existiam fortes indícios de corrupção da parte do magistrado em causa, mais solicitando que se investigasse o património do referido magistrado e, ainda, com que meios adquirira a casa em que habitava.

No dia 22 de Maio de 2007, o CSM, depois ouvir, em sede de inquérito, o juiz em causa, considerou não ser necessária qualquer outra diligência e concluiu pela inexistência de indícios de actuação parcial do magistrado, arquivando o processo. O juiz visado apresentou, então, em tribunal uma acção civil contra Pires de Lima, queixando-se que tinha sido atingido na sua dignidade e honra, tanto pessoal como profissional, e pedindo a condenação no pagamento de uma indemnização de 150 mil euros. Após variadas peripécias processuais, o Supremo Tribunal de Justiça, em 17 de Abril de 2012, condenou o advogado Pires de Lima a pagar uma indemnização ao juiz no valor de 50 mil euros – o valor que os tribunais atribuem para indemnizar uma vida humana no caso de um homicídio...

Pires de Lima queixou-se ao TEDH de não ter tido um julgamento equitativo, dado que nunca lhe tinha sido permitido fazer prova dos factos respeitantes ao juiz que alegara na sua queixa e, ainda, de ter sido violada a sua liberdade de expressão ao ver-se condenado pela utilização das expressões duras, até excessivas, mas que considerara necessárias ao exercício do seu direito, e até dever, de denúncia exercido no local próprio: o CSM.

Tendo Kiki Pires de Lima morrido durante a pendência da queixa no TEDH, o Governo português opôs-se a que a queixa pudesse ser prosseguida pelos irmãos e sobrinhos, tendo em conta que a maioria deles renunciara à herança. Da parte dos familiares foi comunicado ao TEDH que não pretendiam qualquer indemnização, mas tão-somente que o processo prosseguisse para se determinar se a condenação do irmão e tio a indemnizar em 50 mil euros o juiz em causa tinha violado ou não a sua liberdade de expressão. Era uma homenagem que lhe pretendiam prestar.

E, na passada terça-feira, o TEDH, no caso Pais Pires de Lima v. Portugal, declarou que Portugal violara a liberdade de expressão de Pires de Lima, embora aceitando existirem motivos para sancionar as acusações e as expressões duras que utilizara. Mas a condenação numa indemnização de 50 mil euros era excessiva: violara não só a sua liberdade de expressão, como era apta a produzir um efeito dissuasor para todos os advogados, nomeadamente quando estão a defender os interesses dos seus clientes. Uma vitória para todos os advogados e uma merecida homenagem a Kiki Pires de Lima.

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