Até sempre, querido mestre

Para o José Queirós, o jornalismo era fundamentalmente uma causa que se consumava na prestação de um serviço aos cidadãos, à comunidade, à democracia, ao país ou à União Europeia, que via como a prova acabada de que o altruísmo, a coexistência e a partilha fazem parte do melhor que a humanidade tem a dar a si própria.

Sempre que chegava à redacção do PÚBLICO no Porto o rasto de uma polémica, o prenúncio de uma notícia ou o queixume de um protesto, o Zé Queirós ouvia palavra a palavra, facto a facto, com um silêncio comprometido e um empenho generoso. Não havia agitação que lhe perturbasse a lucidez nem emoção que lhe alterasse o mais genuíno, sincero e profundo sentido de justiça que alguma vez vi. O Zé ouvia, meditava, fazia perguntas e contraperguntas, conduzia a discussão para a verdade despida de estados de alma, indagava sobre o sentido dos factos, impunha o seu enquadramento no interesse público, despistava interesses e forçava o rigor.

O Zé Queirós, para mim e para muitos de nós o mais completo jornalista português das últimas décadas, deixou-nos. Os que chegaram ao jornalismo com ele (e o Joaquim Fidalgo) a dirigir a redacção do Porto do PÚBLICO perderam o seu grande mestre. Se há um jornalista que nos deve fazer ter orgulho na profissão, é o José Queirós. Porque, para o José Queirós, o jornalismo era fundamentalmente uma causa que se consumava na prestação de um serviço aos cidadãos, à comunidade, à democracia, ao país ou à União Europeia, que via como a prova acabada de que o altruísmo, a coexistência e a partilha fazem parte do melhor que a humanidade tem a dar a si própria.

Vi-o pela primeira vez quando me juntei a centenas de jovens candidatos a estagiários do PÚBLICO para prestar provas num sábado de manhã. O Zé não se mexeu da secretária onde lia o Expresso. Seria sempre assim. Discreto, pouco dado a eventos sociais, às seduções dos poderes, às esferas de influência, à bajulação. Durante anos, aprendi a apreciar os seus silêncios, as suas caminhadas entre conversas na redacção com os braços caídos das suas camisolas sem mangas, os momentos do final do dia em que se dedicava a rasgar papéis e a deixar a secretária imaculadamente limpa. Apreciava a minúcia com que discutia ou editava um texto. Espantava-me a sua inteligência, a sua memória e o seu profundo saber sobre as ideias, a História, sobre o Porto, o cinema, a literatura ou a política. E, fundamentalmente, comovia-me o seu humanismo.

O José Queirós ensinava-nos a recusar as visões do mundo a preto e branco, a questionar os factos e a exigir que o sentido de serviço público estivesse sempre na base das nossas opções. Para ele, o jornalismo era verdadeiramente uma vocação subordinada à preocupação com as pessoas e com tudo o que pudesse promover ou comprometer a sua dignidade ou a sua liberdade. Nesse exercício, havia uma permanente recusa do sensacionalismo, do mau gosto e da arrogância que tantas vezes macula o jornalismo. O José Queirós era fundamentalmente um homem bom, livre e tolerante e fazia-nos acreditar que sem bondade não havia interesse pelas vidas dos outros, sem liberdade não havia razão para causas comuns, sem tolerância não havia margem para acolher e respeitar as ideias dos outros. O jornalismo ou era ético ou seria outra coisa.

Nestes tempos de dúvidas sobre a importância do jornalismo plural e livre, em que a pressão da última hora exige velocidade e propicia o erro ou o destempero, o exemplo do José Queirós faz-nos muita falta. Nestes dias em que o radicalismo cresce, em que a divergência de opiniões deixou de ser a marca de água da democracia para dar lugar ao ódio, à mentira ou à intolerância agressiva que se deposita na vala comum das redes sociais, faz-nos cada vez mais falta esse jornalismo íntegro, empenhado nas causas colectivas, sensato, justo e plural. O jornalismo que o José Queirós se esforçou por promover entre nós e deixou como legado ao seu jornal. O jornalismo que o José Queirós exigiu quando foi provedor do Leitor deste jornal.

O PÚBLICO e o jornalismo português perderam uma das suas referências. Sejamos capazes de mitigar essa perda lembrando e seguindo o precioso legado que nos deixou. Até sempre, querido Zé.

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