As nossas histórias, como as roupas de que mais gostamos, estão cheias de buracos

Francesa com raízes em Marrocos, com uma casa em Brooklyn e outra em Tânger, Yto Barrada é uma artista que gosta de objectos, de imagens, de arquivos. Nas obras que agora mostra na Gulbenkian faz o que se habituou a fazer – mistura a história que é a dela com a história que é de todos. E dá-nos a conhecer mulheres que nos falam da colonização, da família e da etnologia na primeira metade do século XX.

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nuno ferreira santos

Lê-se sobre Yto Barrada e sobre o trabalho que tem vindo a desenvolver e a expor desde o começo dos anos 2000 nalguns dos mais importantes museus de arte contemporânea, como a Tate Modern (Londres), o MoMA (Nova Iorque) e o Pompidou (Paris), e o que dele dizem curadores e críticos de arte anda muitas vezes à volta do mesmo — elogiam-lhe o olhar atento e subtil, a forma irónica como denuncia problemas sociais e a subalternização da mulher em situações várias, a inteligência com que tem vindo a reflectir sobre a identidade nos seus múltiplos sentidos, em particular no contexto colonial e pós-colonial, tirando partido do facto de, enquanto franco-marroquina, ter um pé em cada lado (na Europa dos colonizadores e na África colonizada). Seja qual for o foco escolhido por quem sobre ela escreve, há duas palavras que aparecem quase sempre associadas ao seu universo criativo: “política” e “poesia”.

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Yto Barrada nasceu em Paris, passou parte dos primeiros anos em Tânger e hoje vive entre esta cidade marroquina e Brooklyn, nos Estados Unidos. Benoit Peverelli

Percorre-se a exposição Moi je sui la langue et vous êtes les dents (eu sou a língua e vós os dentes), que até 6 de Maio reúne 13 das suas obras, algumas inéditas, no Espaço Projecto do Museu Calouste Gulbenkian, em Lisboa, com Yto Barrada e a comissária Rita Fabiana como guias, e torna-se de imediato perceptível a ligação de muitas das peças que ali se mostram ao espaço colonial francês, nomeadamente à Argélia e a Marrocos.

Há trabalhos em têxtil que reciclam, e homenageiam, a arte americana — Untitled (After Stella), de 2018, uma série que parte de outra, a que Frank Stella (n. 1936) dedica a Marrocos em 1964-65; há uma escultura feita de grandes sólidos de madeira que se assemelha a um jogo de crianças (Jeu de Construction Thérèse, 2018); há um filme cujo título evoca a roupa que passa de uns irmãos para outros (Hand-Me-Downs, 2011) e que lhe permite regressar à infância e juventude da sua mãe, passadas no Norte de África e em Paris.

Se nas obras que partem de Stella a referência ao antigo protectorado francês na costa africana é evidente — Yto usa no título que dá a cada uma das peças feitas com tecidos que ela própria coseu e tingiu com materiais naturais e recorrendo às técnicas tradicionais os nomes de cidades marroquinas que Stella usava já na série original (Ceuta, Melilla, Tânger, Tétuan…) —, em Jeu de Construction Thérèse, por exemplo, é preciso ir mais longe para estabelecer ligações.

Esta peça, assim como o diaporama Untitled (Unruly Objects: Thérèse Rivière Mission Musée du Quai Branly Jacques Chirac), de 2016, evocam uma das primeiras etnólogas francesas, de cujos riquíssimos cadernos de campo se retirou o excerto que serve de título à exposição.

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Jeu de Construction Thérèse, uma obra que evoca os brinquedos recolhidos pela etnóloga Thérèse Rivière nas montanhas argelinas Nuno Ferreira Santos

“Eu admiro o trabalho de Thérèse Rivière [1901-1970], admiro a sua tenacidade, a sua ambição de trazer, catalogar e dar sentido a todo e qualquer pedacinho de realidade em que tropeçasse… Isto mesmo quando os seus conhecimentos sobre as sociedades das montanhas eram enquadrados por um projecto de dominação”, explica Yto Barrada (n.1971) ao Ípsilon já a partir da sua casa em Brooklyn, onde vive a maior parte do ano e onde não tem espaço para plantar. “Quando estou aqui, sinto falta do campo, de mexer na terra.”

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Trabalhos em têxteis da série Untitled (After Stella) Nuno Ferreira Santos

O gosto pelo contacto com a natureza, com os elementos, é provavelmente algo que tem em comum com Thérèse Rivière, uma pioneira da Antropologia em França que em 1934 é enviada para a Argélia e acaba por viver dois anos nas montanhas do Aurès, uma extensão da grande cordilheira do Atlas, para estudar os hábitos dos chaouias, um povo de etnia berbere.

Yto cruzou-se com o seu trabalho quando estava à procura de brinquedos e jogos recolhidos no Norte de África no período colonial nas reservas do Museu das Artes e Civilizações da África, Ásia, Oceânia e Américas (conhecido como Quai Branly). Rivière, que antes de partir para a colónia francesa que se tornaria independente em 1962 aprofundara os seus estudos de desenho no Instituto de Paleontologia Humana, ao mesmo tempo que recebia formação como enfermeira na Cruz Vermelha, trabalhou no terreno com outra etnóloga, Germaine Tillion, destacado membro da Resistência Francesa e discípula de um dos grandes nomes da Antropologia do século XX, Marcel Mauss.

Rivière e Tillion estão entre as cientistas que eram enviadas para territórios inóspitos — as montanhas onde trabalharam são ainda hoje das regiões menos desenvolvidas e mais pobres do Magrebe — para viverem durante largos meses ou mesmo anos afastadas de tudo, “apesar da solidão, dos problemas”.

Cadernos de campo e etc.

Yto ficou fascinada com os materiais que fazem parte do espólio de Rivière, uma mulher que possivelmente seria bipolar e que passou os últimos 20 anos da sua vida confinada a instituições psiquiátricas, e decidiu que ia começar a trabalhar a partir deles. No futuro, diz, gostaria de fazer um livro sobre o seu percurso e uma exposição que trate as suas fotografias (tem mais de 3000 identificadas) e muitos dos artefactos que recolheu — brinquedos, utensílios agrícolas, objectos ligados a rituais vários, incluindo feitiçaria – como arte.

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Em The Telephone Books (The Recipe Books), de 2010-2018, a artista brinca com a escala das agendas telefónicas de uma avó que, não sabendo ler nem escrever, criou um código para anotar os contactos de familiares e amigos Nuno Ferreira Santos

“Há muitas peças no puzzle Rivière”, assegura a artista, “a sua entrega à pesquisa, a sua doença, o seu olho extraordinário — ela tem centenas de fotografias e desenhos… E os seus cadernos de campo são fantásticos. Há um corpo de trabalho que tem de ser visto e estudado como um todo.”

São precisamente os seus cadernos de campo, em que muitas vezes as categorias “magia” e “medicina” se confundem e sobrepõem, explica Rita Fabiana, a fonte que alimenta Unruly Objects…, o diaporama que encadeia uma série de imagens de objectos recolhidos pela etnóloga. Estas fotografias feitas por Yto mostram desenhos de casas e de estruturas agrícolas, decalques de padrões cerâmicos, amuletos e pequenas caixas, fragmentos de madeira e de osso, rocas e fusos, contas e conchas, foices e sementes, pedras e bagas. E, claro, os muitos cadernos de capa azul ou preta.

“Nestes cadernos ela faz questão de dizer como obteve os brinquedos, por exemplo: se foram comprados, oferecidos ou trocados, o que é muito interessante neste contexto do debate sobre a restituição a África da arte que de lá saiu no período colonial.”

Se o trabalho de Thérèse Rivière se manteve em grande parte inédito, silenciado, por se tratar de uma mulher e por sofrer de uma doença mental, Yto Barrada não sabe responder, embora acredite que a sua “vida trágica” contribuiu muito para que a obra não seja reconhecida.

“A informação que ela reúne, os seus bonitos desenhos da vida no campo, as suas crenças, a sua letra, o que ela escolheu guardar, a sexualidade feminina que descreve, as receitas para a vida e para o amor, cada uma destas coisas é uma obra de arte. E estão todas nos seus cadernos”, acrescenta a artista. E lembra que, ao contrário da sua família que ficara em Paris e da sua colega de trabalho de campo, Rivière nunca se envolveu activamente no movimento pela independência da Argélia. “Ela não tem um discurso político público contra a colonização, mas ajuda a esconder mulheres que fizeram abortos [na altura ilegais] e que eram perseguidas pela polícia.” Preocupa-se sempre com as mulheres, acrescenta, procura protegê-las.

Também Yto se preocupa com as mulheres, com a forma como vêem o mundo e com o lugar que nele ocupam ou deveriam ocupar. “Sou absolutamente feminista”, diz, para dissipar eventuais dúvidas.

Histórias verosímeis

Criada em Tânger, formou-se em História e Ciência Política na Sorbonne (Paris) e foi só quando estava a viver na Cisjordânia e a trabalhar na tese de fim de curso que acabou por chegar à conclusão de que a sua carreira passaria pela arte, optando, então, por estudar fotografia em Nova Iorque.

Quer seja na fotografia ou no filme, na escultura ou na instalação, esta artista franco-marroquina que nasceu em Paris, vive em Nova Iorque e tem uma casa em Tânger, onde há 12 anos criou uma cinemateca, tem sempre muito a dizer. É talvez por isso que as suas peças exigem muitas vezes um exercício de escrita cuidado. Nos dois trabalhos em vídeo da exposição da Gulbenkian — Hand-Me-Downs (2011) e Tree Identification for Beginners (2017) — nota-se bem até que ponto pode ser importante esse trabalho com as palavras e o mergulho que é capaz de fazer nos arquivos, sejam os da família, sejam os de uma filmoteca no Norte de África ou de uma organização de defesa dos direitos dos afro-americanos.

Em Hand-Me-Downs (2011), Yto reúne uma série de imagens feitas por famílias francesas durante o período colonial em África e junta-lhe parte da história da sua família – conta, falando na primeira pessoa e usando a sua própria voz, o percurso da mãe desde que nasce, em Marrocos, até aos anos de juventude em Paris. As imagens não “ilustram” o texto, o texto não as descreve.

Aos pequenos episódios que encadeia em Hand-Me-Downs chama “narrativas não fiáveis”, porque se limita a contá-las como as recorda. “Tenho formação em História, mas aqui não estava nada preocupada com a veracidade dos factos, em verificar se as coisas aconteceram ou não como me foram contadas e como as guardo na memória, como a minha família as guarda.” É por isso que não há qualquer problema com o facto de nesta obra as histórias estarem “cheias de buracos”: “Como muitas das roupas que numa família passam de uns para os outros e que acabam por ser as de que mais gostamos.”

Coleccionar histórias é o que faz permanentemente esta artista, que se comporta como uma respigadora, sempre avessa ao desperdício: “Sou muito orientada pelos materiais. As ideias desenvolvem-se, porque quero trabalhar com papel, pedras, fósseis. Há projectos que são feitos com o que sobrou de outros. Nada se perde.”   

Partindo de objectos, memórias pessoais e narrativas familiares, Yto cria novos sentidos para uma história que é colectiva, partilhada, dando-lhe uma perspectiva individual que parece torná-la mais próxima e mais verdadeira. Pegar nas pequenas agendas telefónicas da sua avó, ampliando-as a uma escala que subverte o uso original, permite-lhe “falar” da família mas também da colonização francesa no Norte de África; permite-lhe falar da relação de mães e filhos e, ao mesmo tempo, da língua como acto de resistência: “A minha avó materna nunca disse uma palavra em francês em toda a sua vida. Não falar a língua do ocupante era a sua forma de resistir. Teve dez filhos e, como não sabia ler nem escrever, criou uma espécie de código para tomar nota [dos nomes e contactos] e assim poder comunicar com a família. Estas agendas telefónicas são a única herança que tenho dela. Não guardei mais nada.”

Convoca a avó em The Telephone Books (The Recipe Books) e a mãe de novo em Tree Identification for Beginners, que é ao mesmo tempo uma introdução à árvore genealógica da família e o relato de uma viagem, a que a mãe faz pelos Estados Unidos nos anos 1960, quando era uma estudante socialista ávida de se envolver nos grandes temas que marcavam o debate de então, como a descolonização e os direitos civis. Mais uma vez, nada há de ilustrativo nas imagens, que vão mostrando jogos de madeira de cores vivas em que as formas geométricas encaixam umas nas outras, nem uma preocupação efectiva com a confirmação de factos do relato. “O que torna a história oral única é que as pessoas recordam o mesmo acontecimento de formas diferentes. O que escolhem ou não incluir é muito pessoal e, claro, muito pertinente.”

O que faz com que todos estes trabalhos se relacionem sem esforço uns com os outros? O facto de se concentrarem em mulheres (Yto, a mãe, a avó, Thérèse Rivière)? “Com a [comissária] Rita Fabiana escolhi sublinhar as narrativas de desobediência. Quando a vanguarda explora diferentes formas estéticas, não está dissociada de um movimento de libertação: das normas académicas e sexuais, das hierarquias sociais, do respeito pelas tradições e convenções burguesas…”

Se a história oral continua a ter um lugar numa época em que tudo passa mais pela escrita, o trabalho de Yto Barrada ajuda certamente a defini-lo. E a mostrar que as histórias que importa contar são muitas vezes as das mulheres.

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