Costureira, médica, militar… Elas também querem ser campeãs da Europa de futsal

Portugal tenta esta sexta-feira, em Gondomar, chegar à final do Campeonato da Europa de futsal feminino. A selecção atravessa o melhor momento da sua curta história.

<p>Começou a jogar à bola no infantário e um dia foi para a baliza. "Fiz um brilharete. A partir daí foi sempre." Se os remates lhe parecessem fracos, ela "pedia para rematarem normal." No final de 2018, Ana Catarina, guarda-redes da selecção nacional feminina de futsal e do Benfica, foi eleita a melhor guardiã do mundo pela Umbro Futsal Awards by Futsal Planet. A jogadora já foi nomeada para estes prémios seis vezes, quatro delas consecutivas.</p> <p>Hoje, com 26 anos, Ana Catarina e mais 13 futsalistas portuguesas estão nos <a href="http://publico.pt/1861805" target="_blank">últimos preparativos</a> para defender as cores nacionais na fase final do campeonato da Europa de futsal feminino. Esta sexta-feira, Portugal defronta a Ucrânia nas meias-finais, no Pavilhão Multiusos de Gondomar (21h45, RTP1). Ucrânia e Espanha são as outras selecções semifinalistas. </p> <p>A principal inspiração e conselheiro de Ana Catarina é o pai, que também já foi avançado de futebol. Todos os títulos e esta distinção individual foram festejados por ambos com muita emoção. O Europeu não será excepção e é o título que todas querem conquistar, até porque é o primeiro de sempre a ser acolhido pela UEFA.</p> <p>Em casa, com o hino nacional a tocar e a ser cantado a uma só voz, tudo está pronto para que seja dado o passo na profissionalização do futsal feminino. "Era algo necessário e que todos nos desejamos", confessa Ana Catarina, que concilia as balizas do futsal com os estudos na área das finanças. </p> <p>A "voz activa e o protagonismo" estão lá, mas "faltam direitos iguais". Mas, lembra, também "o desporto masculino ainda não tem assim tantas condições comparado com outros países".</p> <p>A qualificação e os jogos de preparação deram muitos golos marcados. O objectivo "é sempre zero golos sofridos", mas o pensamento é "jogo a jogo". Em caso de vitória, festa rija é garantida e há "uma lista de promessas e loucuras" que estão guardadas. "Fica entre nós até porque a lista ainda não está completa."</p> Vera Moutinho

Decorre mais uma aula de educação física num dos pavilhões perto do centro de estágios de Rio Maior, no distrito de Santarém. Esta não é uma aula como as outras: vão entrar em campo algumas das melhores jogadoras do mundo de futsal.

O plantel e o staff técnico, equipados com as cores da bandeira nacional, entram no pavilhão nos minutos finais da aula. Ali vão treinar para preparar a presença na primeira fase final do Campeonato da Europa, que começa esta sexta-feira, em Gondomar.

O futsal mais ou menos desajeitado praticado pelos alunos de uma escola básica das redondezas fazia sorrir as jogadoras sentadas nas bancadas – esticavam as meias, apertavam as chuteiras. Ana Catarina, a melhor guarda-redes do mundo, também começou bem cedo. “Comecei no infantário. Um dia lembrei-me e fui para a baliza. Já estavam cansados que lhes mandasse sempre para lá. Fui eu, correu bem e gostei muito”, conta.

Caso algum rapaz fizesse um remate mais fraco por estar uma menina à baliza, Ana “até pedia para rematarem normal”. Nunca a viram de forma diferente, “muito pela forma como disputava a bola com eles”. “Era de carrinho e tudo”, confessa. “Fiz um brilharete.”

Portugal também já mostra casos de juventude de sucesso. Ana Sofia Gonçalves, “Fifó” no mundo do futsal, é a jogadora mais nova desta selecção (tem 18 anos). Aos 15 anos, foi a atleta mais jovem a estrear-se por selecções A de Portugal. Em Outubro de 2018, também com o seleccionador Luís Conceição no comando, marcou quatro golos na final que valeu a medalha de ouro a Portugal nos Jogos Olímpicos da Juventude, em Buenos Aires, Argentina. “Um dos meus sonhos é vir a ser profissional e ser a melhor jogadora do mundo”, disse, na altura, a jogadora ao PÚBLICO.

"Ser profissional está na forma como nos dedicamos"

A selecção nacional feminina de futsal nasceu em 1997, mas teve um interregno entre 2004 e 2010. Nos últimos anos, a modalidade cresceu e a selecção feminina atravessa o melhor momento da sua curta história. Sonha agora com a conquista do primeiro título internacional de futsal feminino organizado pela UEFA – o acesso à final joga-se esta sexta-feira (21h45, RTP1), frente à Ucrânia, no Pavilhão Multiusos de Gondomar.

Apesar da boa fase da equipa, das 14 convocadas só duas vivem exclusivamente da prática de futsal – ambas em clubes estrangeiros.

Para as restantes, o desporto tem que ser conciliado com outros afazeres. Cátia Morgado (29 anos) gere duas empresas de cosmética; Daniela Ferreira (29 anos), mais conhecida por “Pisko”, é radiologista; Rute Duarte (a mais velha da equipa, com 34 anos) é militar da GNR; Carla Vanessa (28 anos) é conhecida pelo seu “pontapé canhão”, mas também é costureira; Sara Ferreira (26 anos) trabalha no bar gerido pela família; Inês Fernandes (29 anos) é médica; Lídia Moreira, de 23 anos, joga no Novasemente, do concelho de Espinho, a única estreante na convocatória, trabalha numa fábrica de calçado; e Ana Azevedo (32 anos), a capitã, é administradora de uma empresa em Braga – figurou em quinto lugar na lista para melhores do mundo em 2017.

Ana Catarina, jogadora do Benfica, é estudante de finanças – quer ser correctora de bolsa. Já vestiu a camisola portuguesa em 58 jogos. É uma das “resistentes da selecção”. “Estas deslocações causam alguns transtornos”, diz a melhor guarda-redes de futsal do mundo. “[Mas] Eu ainda estou na faculdade e tenho o estatuto de atleta, que dá facilidades a nível de frequências, exames, faltas e propinas.”

A selecção tem apenas duas únicas profissionais do futsal. Jenny, de 26 anos, joga no Burela Pescados de Espanha – foi a autora do golo de calcanhar na goleada frente à República Checa (12-0) no apuramento para as meias-finais do Europeu, visto mais de nove milhões de vezes na Internet. Taninha tem 25 anos e joga na Lazio, em Itália.

“Elas são um exemplo a todos os níveis porque como pessoas são fantásticas e conseguem conciliar isto com os seus estudos”, elogia o técnico principal desta selecção. “Formaram-se, mas nunca deixaram de competir e dedicar-se bastante ao futsal, mesmo depois de terem entrado no mercado de trabalho. Algumas delas terminam treinos à meia-noite, chegam a casa à uma de manhã e no dia seguinte, às sete da manhã, já estão prontas para ir trabalhar”, conta Luís Conceição. “Ser profissional está na forma como nos dedicamos às coisas e elas, nesse aspecto, têm sido fantásticas. É um orgulho para todos.”

Uma concentração pensada ao detalhe

Entre o sacrifício, o talento e a vontade, estas jogadoras vivem dias de sonho. Nas últimas semanas dedicaram-se 24 horas por dia ao futsal. Recebem palestras antes de um treino matinal e outro à tarde. Para estarem presentes nesta concentração em Rio Maior, tiveram que juntar folgas ou utilizar dias de férias.

Neste estágio, todos os momentos estavam programados do início ao fim de cada dia. A hora de acordar é tão sagrada como a do repouso, a meio da tarde, e a de dormir, à noite. Com o pequeno-almoço tomado, depois das 7h30, é hora de estar com os olhos e ouvidos abertos na palestra matinal do seleccionador no auditório. Luís Conceição ou outro elemento da equipa técnica levantam questões observadas em jogos e treinos e chamam as jogadoras à discussão – a reflexão é colectiva.

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Luís Conceição a dar a palestra matinal antes do treino, no estágio da selecção feminina de futsal em Rio Maior Nuno Ferreira Monteiro

Segue-se o treino. Fazem-se os habituais exercícios de aquecimento, à volta do círculo da divisória da quadra. Tem de haver música. “Boa Internet e boas colunas” é o que elas exigem, confirma Gonçalo Ribeiro, team manager da selecção feminina. A ajuda sonora fica-se apenas pelo aquecimento porque o que se ouve depois disso são vozes intensas de jogadores e equipa técnica e o arrastar das sapatilhas no pavimento – sim, é aquele som em que o leitor, caso esteja familiarizado com o futsal, está a pensar. A música fica para depois. Gisela João cantou um poema de Florbela Espanca para apoiar esta selecção. Nos momentos de descompressão, as jogadoras ficam-se pelos ritmos mais mexidos de Anselmo Ralph ou Nego do Borel.

“Estamos prontos”

Na qualificação para as meias-finais do Europeu, Portugal marcou 26 golos e sofreu apenas um, batendo as selecções da República Checa (12-0), Finlândia (3-1) e Sérvia (11-0). No último fim-de-semana, os últimos jogos de preparação com a Hungria terminaram também em goleadas (9-0 e 6-0). “Estamos prontos”, afirmou Luís Conceição.

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Treino da selecção feminina sob a atenção do staff da FPF e algumas escolas Nuno Ferreira Monteiro

No meio de tantos golos, a finalização continuou a ser a principal preocupação do treino ao qual o PÚBLICO assistiu. Habituado a fazer golos, Ricardinho é uma inspiração para algumas das jogadoras portuguesas. O melhor jogador de futsal masculino do mundo também esteve num dos treinos da equipa feminina no estágio em Rio Maior.

Quando são acolhidas pela FPF, o pensamento e as necessidades destas jogadoras merecem atenções redobradas. “Não queremos que lhes falte nada”, afirma o team manager Gonçalo Ribeiro. “Quando elas precisam de alguma coisa, isso já tem de estar resolvido.”

“Elas estão a ter a noção do profissionalismo” e “não se nota diferença na entrega dos homens para as mulheres”, continua. “Às vezes, até dão demais”, revela, entre risos, o membro da equipa técnica. Agora, fica apenas a faltar o título europeu para Portugal, já conquistado no masculino.

Até lá, as jogadoras vão vivendo a experiência da ribalta do futsal. No fim do treino em Rio Maior, os alunos do curso técnico de Desporto do Instituto Educativo do Juncal, Leiria, tiraram fotografias com as craques, que lhes deram autógrafos e ouviram palavras de confiança.

Agora, há que almoçar, antes do descanso. Estágio é “comer, treinar, repousar em absoluto”, sem telemóveis na mão ou conversar com as colegas, resume Gonçalo Ribeiro. Repousar é fundamental, reforça o seleccionador Luís Conceição: “É um dos pontos a que temos dado muita atenção. É recuperar, preparar e estarmos focados no que temos de fazer. Temos acreditado cada vez mais na nossa organização dentro e fora de campo.”

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