Vinte anos

As medidas que têm sido anunciadas, pelo atual Governo, em prol de um processo de descentralização, que aproxime de forma mais efetiva os polos de decisão política e as populações, criam, uma vez mais, a oportunidade de reflexão sobre como aquele se deverá traduzir num efetivo desenvolvimento cultural. O debate sobre a infraestruturação do território e, sobretudo, o modelo que deverá ser adotado no interesse das populações, norteado por uma visão de serviço público, foi espoletado pelo recente projeto de lei sobre a designada rede de cineteatros, apresentado pelo grupo parlamentar do Bloco de Esquerda.

Não obstante, cumpre neste plano salientar que, necessitando esta questão de sério e clarificador debate envolvendo setor cultural e plano de decisão política, a questão do território e da forma mais equilibrada de articular em seu torno produção e receção remontam à génese das políticas culturais em Portugal, tendo conhecido novas dinâmicas a partir da refundação do Ministério da Cultura (MC) em 1995.

Não querendo iludir o passo político decisivo de políticas culturais mais descentralizadas, favorecendo designadamente a eclosão de novos centros territoriais de produção e disseminação cultural, certo é que medidas emanando do Estado Central e do renovado MC tentaram a partir desse momento refundacional estimular crescentes parcerias com os diferentes municípios. Encontramos exemplos eloquentes deste esforço, do lado da circulação e da receção, no que se designou por Programa de Difusão do IPAE secundado pelo Programa Território Artes, em do lado da  infraestruturação do território, a rede de cineteatros e espaços culturais municipais; além dela, uma outra realidade cujo conceito se foi desvanecendo ao longo do tempo, a dos Centros Regionais das Artes do Espetáculo. Embora carecendo de uma conceptualização mais aprofundada, o lançamento dos CRAE correspondeu a um posicionamento inequívoco do MC no sentido de tornar mais abrangente a oferta cultural no território, introduzindo a dimensão regional algures entre os teatros nacionais e a rede de cineteatros, perspetivando, à época, um “ordenamento cultural” em planos complementares.

Vinte anos depois, concluímos que esta perspetiva se esbateu por completo. O estatuto CRAE desapareceu, vencido pela dualidade central/municipal e suas lógicas atávicas e persistentes; contudo, não será justo nem legítimo considerar que o carácter inovador desta medida se tenha completamente perdido. Muito pelo contrário, um novo modelo de gestão cultural foi lançado e permanece até hoje naquele que é um caso ineludível de sucesso: o Teatro Viriato.

Foto
Teatro Viriato Adriano Miranda

Referência exemplar no território nacional, este projeto nasce da confluência absolutamente excecional de vários fatores: um município que se decidira anos antes (1986) pela recuperação patrimonial do seu teatro centenário; uma cidade que soube preservar e relançar a sua memória através do projeto Área Urbana –​ Núcleo de Ação Cultural de Viseu; um Ministério da Cultura empenhado num inovador desenvolvimento do território; a vontade de Paulo Ribeiro em fixar em Viseu a sua companhia; e, por fim, uma equipa de profissionais altamente competente e especializada que, em torno do seu diretor, soube afirmar o projeto lançando-o progressivamente na cidade, na região, no país e na esfera internacional.

Assim, o conjunto de intervenientes implicados na sua implementação desenvolveu ao longo de duas décadas um modelo de gestão cultural que ainda hoje conserva a sua singularidade. São várias as razões que o explicam e que me permito enunciar aqui. Em primeiro lugar, uma constante sustentação por parte da autarquia e do Estado central; tal permitiu a estabilidade necessária para o desenvolvimento do projeto, sem sobressaltos ou quebras na sua dinâmica. Em segundo lugar, a relação de confiança estabelecida, no plano político, entre os financiadores e a entidade gestora, o CAEV, oriunda do terceiro setor, fortemente ancorada, desde a sua génese, na cidade e no seu dinamismo sociocultural. Cumpre ainda referir a associação de uma entidade artística com o prestígio da Companhia Paulo Ribeiro, norteada para a criação e produção da obra do coreógrafo, e o Teatro Viriato orientado, por seu turno, para a apresentação, difusão e produção de uma programação de espetáculos pluridisciplinar. Salientemos como fundamental, todavia, que a profícua parceria entre estas duas entidades preservou sempre a autonomia de uma em relação à outra, afirmando missões, metas e objetivos distintos. Querer confundi-los é contrariar os princípios fundadores sobre os quais o projeto foi construído, e, mais grave do que isso, negar o êxito alcançado pelo modelo criado. Por último, a atenção e a profundidade dada à formação das equipas legítimas legatárias do grupo instalador inicial, onde pontuaram profissionais de exceção como Guillaume Baschet-Sueur,  Maria de Assis Swinnerton e José Fernandes; do seu empenho resultou uma equipa reconhecida profissionalmente a nível nacional e internacional. Está, pois, longe se ser caso fortuito o facto de Paula Garcia, atual diretora artística do Viriato, proceder desta notável origem, desde a sua génese aliás, o que lhe permitiu a consolidação de um conhecimento fundamental sobre o projeto ao longo de duas décadas, agora desempenhado, com reconhecida excelência, no exercício da sua função

Referi acima a relação de confiança entre financiadores e plano de gestão; nela radica, em boa parte a chave do sucesso, estabilidade e capacidade de visão do modelo. O seu exemplo singular devia ser objeto de análise cuidada, agora que um novo ciclo de reflexão se enuncia visando, mais uma vez, encontrar casos de boas práticas que permitam o desenvolvimento de uma rede ou redes infraestruturais, obviando o desenvolvimento mais equilibrado de cada território e correspondendo às suas reais necessidades. O exemplo do Teatro Viriato permite-nos, deste modo, encarar as relações entre poderes públicos e terceiro setor numa outra perspetiva, sob o princípio do arm’s length tão conhecido e respeitado em vários países europeus. Na sua prática, não é o princípio de tutela que impera nas relações entre financiadores públicos e organizações culturais, mas sim o de verdadeira parceria, tendo como premissa a maioridade e autodeterminação do setor cultural, o qual, recusando o paternalismo e a instrumentalização, afirma a legitimidade e fulcral importância da sua ação no desenvolvimento de populações e territórios.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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