À volta de Tio Vanya há uma paisagem de desesperança

Até 16 Março, Bruno Bravo dirige no CAL, Lisboa, um Tio Vanya em que o tempo se esfuma diante dos nossos olhos e o absurdo da vida está sempre a rondar. E que volta a colocar em cena o actor Luis Miguel Cintra.

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Bruno Bravo

Vemos Vanya pela primeira vez e, segundo nos informa Tchékhov no texto da peça, surge-nos com “um ar amarrotado”. Senta-se num banco, endireita a gravata, parece despertar e interromper por momentos a letargia a que se entregou. E não demora a justificar-se a Astrov: “Desde que o professor veio viver para cá com a sua menina que a vida perdeu os elásticos. Durmo às horas erradas, como a comida errada e bebo vinho. Faz tudo mal.” O professor universitário, Serebriakov, mudou-se da cidade para o campo, instalou-se na quinta que pertencia à sua falecida primeira mulher, e provocou um pequeno terramoto nos dias daqueles que por ali se arrastavam, aguentando as terras, enquanto o professor procurava brilhar no meio académico.

Vanya é o ex-cunhado de Serebriakov, irmão dessa mulher que o professor perdeu no passado; o professor regressa agora com uma jovem e bela companheira (Yelena) pelo braço. O tempo passou por todos, espezinhou cada um deles, mas talvez nenhum tenha sido tão castigado quanto Vanya – alguma razão haverá, aliás, para Tchékhov lhe ter atribuído o protagonismo do título Tio Vanya. Ivan Petrovich, Vanya por diminutivo, é um homem derrotado; enxovalhado e humilhado por ter ficado na sombra de alguém tão pouco extraordinário quanto Serebriakov, vê agora. E queixa-se a Astrov, o médico, de que o tempo que o professor passa a trabalhar no escritório deveria ser gasto a contar a “história extraordinária” da sua vida. Assim resumida por Vanya: “um professor reformado, um bacalhau crescido”, “aflito com gota, reumatismo, enxaquecas”, cuspido para o campo por se revelar incapaz de custear a vida na cidade. “Está sempre a queixar-se das suas desgraças quando, na verdade, só teve fortuna na vida”, queixa-se. A sorte que a si, Vanya, sempre desgraçadamente lhe escapou. Ou que não soube reclamar.

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É a primeira produção dos Primeiros Sintomas desde que se mudaram da Ribeira para o Centro de Artes de Lisboa — e será também a carreira mais longa, de 13 de Fevereiro a 16 de Março Bruno Bravo

Vanya, acusa a sua mãe (Marya), mudou nos últimos anos, tornou-se irreconhecível, passou de luminoso homem de convicções a um cínico deprimido, preguiçoso, alguém que aos 47 anos passa as noites sem dormir, tomado pela vergonha e pela raiva de ter desperdiçado o seu tempo e não ter sabido empregá-lo na construção de quaisquer feitos grandiosos. Mas não é o único a fazer as contas ao tempo. Astrov, o médico, queixa-se logo no diálogo inicial de que ao enfiar-se debaixo dos lençóis todas as noites treme de medo que possa ser chamado para ver um outro doente. Em mais de dez anos não teve um único dia de descanso e agora é um velho. Por isso, resume a vida como “um tédio, estúpida e repugnante”.

Bruno Bravo, fundador dos Primeiros Sintomas e encenador deste Tio Vanya – que conta com um elenco formado por Paulo Pinto (Vanya), António Mortágua, Amélia Videira, Carolina Salles, Nídia Roque, Joana Campos, Ivo Alexandre e Luis Miguel Cintra (sim, depois do muito anunciado abandono dos palcos, não resistiu ao desafio de encarnar o professor Serebriakov) –, pressente uma série de subtemas que afloram no interior de um tema uma deambulação mais geral em torno do tempo. “Por detrás de tudo isto pressinto uma reflexão a meio caminho de qualquer coisa, a meio caminho da vida, algo talvez relacionado com a meia idade”, diz.

Tio Vanya é a primeira produção dos Primeiros Sintomas desde que se mudaram da Ribeira para o CAL (Centro de Artes de Lisboa), em Dezembro de 2017 – e será também a carreira mais longa, de 13 de Fevereiro a 16 de Março, numa sala que, até agora, tem estado vocacionada sobretudo para o acolhimento. O texto de Tchékhov marca também um regresso da companhia ao reportório teatral, após uma série de investidas em obras literárias – O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, Pinocchio, de Carlo Collodi, A História Assombrosa de como o Capitão Michel Alban Perdeu o seu Braço, a partir de Gaston Leroux. “Até mesmo o Lear que fizemos”, acrescenta Bruno Bravo ao Ípsilon, “seguiu uma abordagem quase literária da peça do Shakespeare, que também tem essa componente muito forte. E começámos a sentir que podia ser interessante contrariarmos um pouco estes últimos espectáculos.”

Este texto, em particular, atraía Bruno Bravo por se tratar daquela que é, na sua opinião, “a peça mais abstracta de Tchékhov ou aquela que, porventura, poderá sintetizar tudo aquilo que Tchékhov sugere ou propõe nas outras peças e que é este princípio de juntar elementos que, à partida, contrastam uns com os outros – drama e comédia, personagens que são expecpcionais e únicas ao mesmo tempo que sentimos que são absolutamente comuns, a sugestão de conversas quotidianas e o mais banais possível mas que são também reflexões ou tiradas filosóficas.” Tentar conferir um equilíbrio entre todos estes opostos e fazer vibrar a “escrita incrível” – carregada de subtilezas e de uma elegância discreta do autor russo – é o “desafio imenso” que identifica na sua frente.

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Bruno Bravo

Bode expiatório

Um dos atractivos primordiais de Tio Vanya é o carácter magnético do professor Serebriakov. Algo como um bode expiatório para toda a desgraça à sua volta, mas que parece pairar acima de todo este cenário de vidas em ruínas – “Todos acordados, todos exaustos”, diz Serebriakov às tantas, “eu sou o único feliz.” Serebriakov “é o motor de qualquer coisa que faz desenvolver nas restantes personagens conflitos consigo próprios – que não são necessariamente conflitos com o professor”, acredita Bruno Bravo. Logo desde o início, confessa o encenador, antes sequer de constituir o elenco de Tio Vanya, a imagem que se lhe impunha era a de Luis Miguel Cintra na pele do professor. “Foi uma espécie de utopia”, diz Bravo. Até porque os dois mal se conheciam, apesar de o encenador ter sido sempre um “grande seguidor da Cornucópia”, e Luis Miguel Cintra havia anunciado, em Novembro de 2015, durante a sua encenação de Hamlet, o abandono dos palcos.

Enquanto os Primeiros Sintomas se debatiam com dificuldades financeiras e a exclusão dos apoios dos últimos sustentados plurianuais atribuídos pela DGArtes, Tio Vanya permanecia um desejo nebuloso, ainda que Luis Miguel Cintra continuasse a impor-se como única hipótese para dar corpo ao professor Serebriakov. “Estava com muito receio de me fixar só nele, à espera que não fosse mesmo possível”, admite o encenador. Bruno chegou a pensar várias vezes nem sequer encetar um contacto que lhe parecia condenado à partida. Mas quando, por fim, a companhia decidiu avançar mesmo com a peça, pegou no telefone, convencido de que só após escutar uma recusa de Luis Miguel Cintra conseguiria avançar para um plano B. “Ele disse-me logo que sim e eu fiquei muito atrapalhado porque não estava à espera daquela resposta”, ri-se.

A presença de Luis Miguel Cintra em palco é, pois, um acontecimento. Mas foi-o também durante o período de ensaios, quando actores e encenador foram descobrindo o quanto Tchékhov deixa um enorme espaço para a abordagem à narrativa e às suas personagens. “Basta ver quatro ou cinco versões do Vanya”, conta o encenador, “para vermos quatro ou cinco Vanyas muito diferentes – uns mais excêntricos, outros mais deprimidos. E isso vale também para o Astrov, para o professor, para a Sonya ou para a Yelena. Só que tudo bate certo, tudo é possível. Parece que este texto coabita nos opostos.” Essa elasticidade de registos é sobretudo testada quando, no clímax da peça, Vanya dispara sobre o professor (não vamos dizer mais do que isto), naquilo que Bruno Bravo considera a “única hipótese de diálogo” tentada entre os dois.

Essa cena, Bruno Bravo já a viu como uma rebentação emocional, coisa desabrida e histérica, numa discussão desencadeada pela proposta de Serebriakov de vender a quinta da família. A quinta a que Vanya se dedicou durante 25 anos para que o professor pudesse brilhar na cidade, em vez de ter seguido “uma vida normal” em que “podia ter sido um Schopenhauer, um Dostoiévski”. No CAL, essa mesma cena segue “um registo mais baixo, mais esvaziado”. De resto, o mesmo tom, de uma belíssima e penetrante secua, que Bravo adopta para o espectáculo, criando o espaço suficiente para que se insinuem ideias como a oposição do trabalho físico e do trabalho intelectual, a colocação do trabalho no centro da vida (como se pudesse dar-lhe um sentido por si só) ou a passagem do tempo como um elemento potenciador do absurdo do dia-a-dia – algo que, para Bruno Bravo, estabelece uma relação entre Tchékhov e Beckett na maneira como atiram o tempo para a arena teatral.

E o absurdo, esse absurdo da ausência desesperada e desesperançada de um sentido para a existência, impõe-se ainda mais com a pergunta frequente de ‘que horas são?’. Como se fizesse alguma diferença. Como se fosse necessário provar que o relógio não parou. Como se isso precipitasse o final da “enfiada longa de dias, de noites intermináveis”, a que Sonya se refere, e assim se esgotassem as provações que o destino coloca pacientemente no caminho.

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