Um grande debate nacional, antes que seja tarde

O problema foi que falhámos os debates que mais importavam e ficámos reféns do político de turno e dos “choques” que nos propunham sem qualquer visão de continuidade, ainda que na diversidade.

É fácil olharmos para as atribulações do Reino Unido com o "Brexit", da França com os coletes amarelos, ou da Espanha consigo mesma e acharmos que estes países chegaram fortuitamente ao ponto em que se encontram. A história, já dizia o outro, “é só um raio de uma coisa depois da outra”. Um passo em falso hoje ou um erro de um político amanhã dá um país bloqueado depois de amanhã.

Mas não. A história não é só “um raio de uma coisa depois da outra” — quem parece ter inventado essa expressão foi o historiador Arnold Toynbee, que escreveu mil e tal páginas precisamente para a refutar. Não são só escolhas políticas ocasionais, nem contingências, nem acasos que levam um país ao ponto a que chegaram agora Reino Unido, França ou Espanha. Quando isso acontece, a culpa não está nas estrelas, mas em nós mesmos (já dizia outro “outro”— Cássio, no Júlio César, por Shakespeare — que sabia do que falava). Os bloqueios políticos do Reino Unido, da França e da Espanha são muito diferentes entre si, e os três países são muitos diferentes entre si também, mas todos têm uma coisa em comum: as suas raízes estão em décadas de uma política montada para varrer as diferenças para debaixo do tapete, estão na incapacidade estrutural destes países em fazerem os debates cruciais sobre si mesmos, estão na facilidade em encontrar bodes expiatórios para evitar reconhecer os erros anteriores, e estão na inevitabilidade de uma crise constitucional quando nenhum destes problemas foi corrigido.

A título de exemplo — porque muito mais haveria para dizer — França e Reino Unido têm sistemas políticos montados expressamente contra a proporcionalidade, o que acabou por resultar na exportação dos seus políticos anti-sistémicos (Le Pen e Farage) para o Parlamento Europeu, onde tiveram as condições ideais para não se desgastarem e provocarem danos muito maiores do que se tivessem tido hipótese de se exprimir — e queimar — na política nacional. Daí nasceram os bodes expiatórios — a Europa para os britânicos, os magrebinos para os franceses — que servem apenas para mascarar que nenhum dos países consegue projetar o seu futuro eficazmente. A Espanha tem uma constituição pactuada entre o franquismo e a democracia que não é sentido como sua por uma nova geração e uma grande parte do país, e que pretende tapar o sol da realidade plurinacional da Espanha com a peneira do preceito constitucional que impede a discussão dessa mesma realidade. “Madrid” e os independentistas tornam-se os bodes expiatórios uns dos outros (mas só o primeiro mantém os segundos na cadeia em processos altamente politizados que só agora estão no início). Nenhum dos três países discutiu o seu futuro a longo prazo. Em França, o presidente Emmanuel Macron iniciou agora um “grande debate nacional” — mas só agora, quando já está muito pressionado pelos coletes amarelos. E quando é assim, a crise constitucional comparece num momento em que as frustações já extravasaram e não há qualquer boa-fé ou boa vontade para as resolver.

Mas esta crónica não é sobre a França, nem o Reino Unido, nem a Espanha. Esta crónica é sobre nós, Portugal. Sim, não nos julguemos exceção. Portugal não está agora na situação em que esses nossos três vizinhos geográficos, históricos e culturais se encontram. Esperamos que não venha a estar. Mas seria ingenuidade acreditar que não o está porque conseguimos projetar o futuro do país. Na verdade, Portugal teve sim um rumo claro nas décadas que se seguiram ao 25 de abril. Era ele o dos “três D” — Democratizar, Desenvolver e Descolonizar — inventado por Medeiros Ferreira e consagrado pelo Manifesto do MFA. Como é evidente, o democratizar, desenvolver e descolonizar de uns não era idêntico ao de outros, o de comunistas não era igual ao de socialistas, o da direita não era igual ao da esquerda. Mas é isso que faz a força de um objetivo coletivamente assumido: ele tem tantas versões e declinações como necessário, sem deixar de ser partilhado. E foi isso que nos permitiu criar o SNS e o salário mínimo, ampliar o acesso ao ensino superior e convergir com a Europa, reestabelecer sindicatos e partidos, criar um regime e, acima de tudo, uma sociedade pluralista, aberta e moderna.

A partir de 2000 há nítidos sinais de exaustão. O país que comemorámos na Expo ’98 achando que iria passar a ser o novo normal de repente já não estava ali, ou estava, mas não tinha bem para onde ir. Em meu entender, o problema foi que falhámos os debates que mais importavam — nem o que iria acontecer à nossa economia com a entrada da China na OMC, nem à nossa posição na Europa com o alargamento a leste, nem às nossas finanças com a entrada no euro — e ficámos reféns do político de turno e dos “choques” que nos propunham (o “choque fiscal” de Durão, o “choque tecnológico” de Sócrates, o “choque de austeridade” de Passos e Portas) sem qualquer visão de continuidade, ainda que na diversidade. Chegámos assim a Costa e à geringonça, que tem sido mais remendo que remédio. Deu para reverter alguns dos erros passados, sim, e por isso sempre defendi esta solução ainda antes de ela ter nome (e quando todas as direções partidárias a rejeitavam). Mas onde se discute a organização territorial e a regionalização? O sistema político? A reforma do Ensino Superior? A democratização da União Europeia e o nosso lugar nela? O nosso modelo económico para as próximas décadas? Se estes debates se estão a fazer, avisem-me por favor porque eu não dou por eles — e não é no São Bento dos soundbytes com certeza.

Apesar de tudo, há países que fazem bem — ou menos mal — esses grande debates nacionais: a Alemanha e a reunificação, a Finlândia e transformação da sua especialização económica, a Irlanda e a laicização da sua sociedade os Países Baixos e o seu novo papel na UE pós-"Brexit". E, como disse, nós no passado já o fizemos bem também. É importante recuperar a importância do Grande Debate Nacional, e realizá-lo — por que não nos 48 anos da democracia, em 2022, quando tivermos mais dias de liberdade do que os que tivemos de ditadura? — antes que seja tarde demais.

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