Factos, opiniões e desinformação sobre a Venezuela

A ignorância não é força, como no orwelliano Ministério da Verdade. Leva é a opiniões que se nutrem de uma visão distorcida do mundo e dos conflitos internacionais.

1. Apesar dos seus inúmeros defeitos, as democracias liberais ocidentais não são sociedades orwellianas. Não há um monopólio da verdade e da informação pelo Estado. Existe a possibilidade exprimir opiniões divergentes, de contestar e de contra-argumentar, seja pela imprensa convencional, seja pelas redes sociais, seja pelas manifestações de rua e no espaço público. Não temos de nos submeter a um Ministério da Verdade — Miniver na Novilíngua —, tal como Winston Smith na distopia 1984, uma “enorme pirâmide de alvíssimo betão resplandecente que se erguia, sobre o terraço, trezentos metros acima do chão”. Tinha colocadas na fachada “os três lemas do Partido: Guerra é Paz / Liberdade é Escravidão / Ignorância é Força”. (Ver George Orwell, 1984, trad. port., Círculo de Leitores, 1983 p. 9).

Viver numa sociedade fundamentalmente livre é um enorme bem que muitos subestimam. Para alguns, isso ocorre porque nunca passaram por uma experiência real de autoritarismo, nas suas múltiplas formas, seja à (extrema)direita ou à (extrema)esquerda. Para outros, por viverem encerrados em utopias igualitárias, em abstracto mais justas, mas no mundo real demasiadas vezes opressoras do pluralismo e da dissidência. Foi contra isso que se insurgiu George Orwell (pseudónimo de Eric Arthur Blair), quando escreveu o memorável e, de alguma forma, intemporal 1984, durante os anos 1940. (Ver 1984: George Orwell's road to dystopia in BBC, 8/02/2013,). 

2. Numa sociedade democrática e plural é normal a existência de múltiplos e contraditórios pontos de vista. Isso pode ocorrer sobre questões políticas internas e sobre assuntos de política internacional. No plano internacional, a delicada situação económico-político-social que a Venezuela atravessa tem estado no centro do debate e de opiniões por vezes radicalmente contraditórias. O facto de existir nesse país uma numerosa comunidade de portugueses e seus descendentes, número que será próximo das 400 mil pessoas, aumenta, também, o interesse e o carácter emotivo da discussão e opiniões. 

A diferença de opinião é uma virtude democrática inquestionável. Mas o mesmo não se pode dizer quando a opinião não tem a suportá-la uma factualidade minimamente sólida. No caso da Venezuela, vale a pena fazer uma breve análise sobre alguns aspectos que têm sido objecto de múltiplas e contraditórias afirmações: (i) Juan Guaidó é membro do partido Vontade Popular popular que integra a coligação da oposição (Mesa da Unidade Democrática), um partido de extrema-direita; (ii) a Venezuela está à beira de uma intervenção militar estrangeira; (iii) A Venezuela é o país com as maiores reservas de petróleo do mundo o que explica a vontade externa de afastar Nicolás Maduro, por não aceitar o jogo e interesses capitalistas.

3. Juan Guaidó pode ser rotulado como um político de extrema-direita? Antes de responder à questão, vamos procurar apresentar os factos relevantes. Pelos dados disponíveis, Juan Guaidó é oficialmente membro do partido Vontade Popular. (Ver Voluntad Popular, Diputado por Vargas Juan Guaidó). Ideologicamente, esse partido da oposição venezuelana assume como principal referência de afinidade política no campo externo a Internacional Socialista. (Ver “Voluntad Popular admitido como miembro pleno de la Internacional Socialista”, 14/12/2014). A pertença ao grupo social-democrata/socialista a nível internacional está também identificada na página oficial dessa organização. (Ver Internacional Socialista/Partidos Miembros de la Internacional Socialista).

Assim, pretender (des)qualificar Juan Guaidó como membro de um pequeno partido de (extrema)direita, não parece ter qualquer suporte factual nem conceptual-ideológico, pelo menos no sentido que usualmente se dá ao conceito político de (extrema)direita.

De forma incompreensível, essa (des)qualificação foi usada, entre nós, por Boaventura Sousa Santos. (Ver A Nova Guerra Fria e a Venezuela in PÚBLICO, 6/02/2019).  O que seria razoável e fundado era afirmar outra coisa: mostrar dúvidas quanto às consequências do apoio de Donald Trump, em termos de garantias de uma transição, sem entorses, para uma futura Venezuela democrática. Isto na medida em que o apoio de alguém com as características do actual Presidente dos EUA poderá dar força aos grupos populistas mais à (extrema) direita da oposição. Todavia, não é esse o caso do partido de Juan Guaidó.

4. A Venezuela está à beira de uma intervenção militar estrangeira? A interferência/intervenção militar externa é sugerida, de forma explícita ou implícita, como um facto sólido, no discurso de duas visões diametralmente opostas sobre a questão venezuelana. Uma situada à direita/(extrema)direita, que absorve acriticamente qualquer informação — em certos casos mais desinformação —, oriunda da oposição venezuelana, ou de outros meios que lhe são próximos.

Nessa visão, já está em marcha uma intervenção militar estrangeira da Venezuela, feita por cubanos. (Ver, entre outros, La invasión militar cubana en Venezuela in Cubanet, 9/03/2018). A opinião dos que já descortinam na cooperação militar do Governo de Nicolás Maduro (Venezuela), com o Governo de Cuba, uma invasão militar estrangeira, terá saído reforçada pelas notícias de finais de 2018, sobre a presença de dois bombardeiros nucleares russos na Venezuela. (Ver Los bombarderos rusos que llegaron a Venezuela y qué espera de ellos el gobierno de Nicolás Maduro in BBC 10/12/2018).

Há aqui um recuperar dos fantasmas da Guerra-Fria dos anos 1950 e 1960, gerados pela transformação de Cuba num Estado socialista-comunista, com Fidel Castro, transferindo-os para a Venezuela de Hugo Chávez e Nicolás Maduro. Nesta visão, a presença dos bombardeiros nucleares russos em solo venezuelano é a versão do século XXI da crise dos mísseis de Cuba de 1962.

5. Nas opiniões mais à esquerda/(extrema) esquerda também uma intervenção militar externa, ou a sua iminência, parece baseada em factos sólidos. Não sendo nova a ideia — está de alguma forma presente desde que Hugo Chávez chegou ao poder em finais dos anos 1990 —, ganhou particular intensidade em finais de 2018 e inícios de 2019.

É uma imagem invertida das já referidas opiniões/convicções à direita/(extrema)direita. (Ver Estados Unidos aprieta la soga a Venezuela: ¿Tendrá éxito el golpe? in  Lucha de Clases/Voz marxista de los trabajadores y la juventud, 31/01/2019). Agora não são os russos e os cubanos os agentes da interferência externa/invasão na Venezuela, mas os norte-americanos e os colombianos.

Para sustentar essa opinião, dois factos são usualmente invocados. Após Juan Guaidó se ter proclamado Presidente interino da Venezuela, obteve um imediato reconhecimento dos EUA e de outros Estados da América Latina — desde logo da Colômbia e do Brasil. Esse facto dará uma solidez irrefutável à suspeição.

E este junta-se a folha de anotações do caderno de John Bolton, o Conselheiro Nacional de Segurança dos EUA, que, (in)convenientemente mostrava, escrita à mão, “5.000 militares para a Colômbia” como se pode ver em qualquer vulgar fotografia da imprensa. (Ver 5,000 troops’: Photo of John Bolton’s notes raises questions about U.S. military role in Venezuela crisis in The Washington Post, 28/01/2019). 

Talvez os que antecipam que a Venezuela está à beira de uma intervenção militar estrangeira tenham visto outra folha do caderno de notas de John Bolton, negligentemente exibida e com um cronograma. Ou considerem o envio de ajuda humanitária dos EUA, pela fronteira da Colômbia, uma invasão. Mais o mais plausível é que John Bolton — tal como Vladimir Putin —, tenha feito uma manobra de desinformação. Se a hipótese de uma intervenção militar externa não se pode afastar totalmente, não é conhecido, nesta altura, nenhum facto sólido que a confirme.

6. A Venezuela é o país com as maiores reservas de petróleo do mundo, o que explica, desde logo, a vontade de intervenção externa. É uma evidência que nem precisa de qualquer demonstração. Nas estatísticas OPEP de 2017, da qual a Venezuela é membro, esta surge destacada com 24,9% das reservas dos seus membros, o que representará cerca de 20% das reservas mundiais. Quanto ao conjunto dos países da OPEP, detêm mais de 80% das reservas mundiais. (Ver OPEC, share of world crude oil reserves, 2017).

Estes dados poderiam encerrar a questão das reservas mundiais de petróleo, se o sector permanecesse a mesma realidade de há 10 ou 15 anos. Mas não é assim. Houve transformações profundas no panorama mundial do petróleo/energia que alteram substancialmente a imagem que a OPEP quer dar — um cartel em perda crescente de influência e económica e política ao mundo. Em 2012, já se antecipava que as Américas, EUA incluídos, se iriam tornar auto-suficientes até 2030. (Ver Shale oil and gas will help make western hemisphere self-sufficient” in Guardian, 18/01/2012).

Quando nas estimativas é incluído o petróleo não convencional ou shale oil (petróleo de xisto) e tido em conta o que efectivamente poderão ser reservas comercialmente exploráveis, a imagem é substancialmente diferente, dada pela OPEP: “Os EUA ultrapassaram novamente a Arábia Saudita como o maior detentor mundial de petróleo recuperável […] adicionaram cerca de 50 mil milhões de barris no último ano e agora detêm cerca de 310 mil milhões de barris de petróleo recuperável com as tecnologias actuais, o equivalente a 79 anos de produção de petróleo dos EUA, nos actuais níveis de produção.” (Ver Rystad Energy, The United States Again Holds More Recoverable Oil Than Saudi Arabia, Press Release, 15/06/2018).

Quer dizer, invocar, sem mais, a existência das maiores reservas de petróleo na Venezuela é algo gerador de equívocos. Para além da questão se saber se tais estimativas de reservas têm rigor, nada diz quanto à qualidade do petróleo, os custos e possibilidades de extracção, etc. Não reflecte a realidade do mercado mundial dos produtos petrolíferos e seus derivados, na sua complexidade e abrangência actual. A importância relativa das reservas de petróleo venezuelano — embora continue a ser grande —, é bastante menor do que muitos afirmam, desde logo para a economia dos EUA, com importantes reservas de shale oil. Ignorar, ou subestimar, as enormes mutações ocorridas no mapa da energia da última década, distorce qualquer análise geopolítica que se queira consistente.

Numa reductio ad absurdum (redução ao absurdo) do argumento do controlo das reservas de petróleo, seríamos levados a admitir, como plausível, uma intervenção no Canadá, pois as relações de Donald Trump com o Governo de Justin Trudeau também têm sido más. E no ranking mundial das reservas de petróleo o vizinho do Norte ocupa já o 3º lugar, estando ainda mais próximo dos EUA geograficamente. (Ver CIA, The World Fact Book, Crude Oil — Proved Reserves, 2017).

7. Por último, o problema de se ignorarem, ou evadirem, factos relevantes para formar uma opinião esclarecida. Ainda relacionada com as riquezas naturais da Venezuela há uma importante questão sobre a degradação ambiental, usualmente ignorada na grande maioria análises.

A indústria petrolífera é, sem qualquer dúvida, uma das que mais impactos negativos tem no ambiente. São bem conhecidos alguns desastres ambientais provocados por multinacionais ligadas ao transporte, refinação ou extracção de petróleo. O derrame de petróleo do golfo do México em 2010, devido à explosão de uma plataforma da BP, provocou o maior desastre ecológico — derrame em águas do mar —, da história da indústria petrolífera. Poderia supor-se que numa Venezuela imbuída de ideais socialistas bolivarianos, e de um espírito de rejeição do lucro e ganância capitalista, existiria um maior cuidado com o ambiente. Apesar da retórica da preservação ambiental, na prática não é assim.

A destruição da ecologia da bacia do Orenoco está também em marcha sob o actual Governo de Nicolás Maduro. Ocorre ligada à extracção de petróleo pela companhia estatal PDVSA. (Ver Sputnik, Petróleos de Venezuela atiende comunidades afectadas por derrame de crudo”, 7/11/2016, e também Derrames de petróleo en Venezuela aumentan y gobierno no revela el impacto real in Mongabay 13/08/2018). Ocorre ainda, e de uma forma que parece ser até mais grave, ligada aos processos de extracção de ouro, pelos impactos ambientais e na vida das comunidades locais, apesar da atitude de negação do Governo venezuelano. (Ver Arco Minero del Orinoco vulnera fuentes vitales y diversidad cultural en Venezuela in Laizquierda Diario 4/09/2016).

A ignorância não é força, como no orwelliano Ministério da Verdade. Leva mas é a opiniões que se nutrem de uma visão distorcida do mundo e dos conflitos internacionais.

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