O assassinato de companheiras obedece a um padrão cultural que importa combater frontalmente

Qualquer observador neutro, mulher ou homem, sofre com o permanente assassínio de dezenas de mulheres por ano e espanta-se com a impotência dos aparelhos sociais, nomeadamente de educação e de justiça. Parte dessa impotência parece vir de duas tendências históricas – a do individualismo metodológico, que torna cada incidente num “caso” jurídico (e é assim que habitualmente é explorado dramaticamente, pelos media); e a das políticas da identidade, que promove a guerra dos sexos e entrega às feministas a liderança da luta contra o feminicídio, como se não se tratasse de uma questão social que escandaliza a grande maioria dos cidadãos de ambos os sexos.

Falei de observador neutro para indiciar que existem populações que racionalizam e aprovam o espancamento e até mesmo o assassinato de mulheres, promovido por religiões, e que indivíduos desse jaez, mais regularmente associados a homens de aldeias ou de zonas suburbanas, quase iletrados e sobrevivendo a custo em trabalhos duros e precários, também existem espalhados pela burguesia e integram os mais altos escalões das principais aparelhos, dos Tribunais ao Exército e às Polícias.

Nesta argumentário, é a liberdade sexual e a honra das mulheres que é posta em xeque, através do discurso que, desde a família e desde a escola, as intimida e agride, identitária ou fisicamente, ao menor desvio da ‘decência’ que os familiares lhes exigem, ao mesmo tempo que se glorificam as proezas sexuais dos homens.

Como antropólogo, noto que tem sido dado pouco relevo ao facto de, regularmente, o assassinato de uma mulher ser acompanhado do suicídio do assassino. Trata-se de um padrão cultural com longa tradição. Há uns anos, no Alentejo, um vizinho meu, a caminhar para uma invalidez precoce, tentou matar a mulher, disparando sobre ela a caçadeira e suicidando-se de imediato. A mulher sobreviveu. Outro vizinho fez questão de me informar depois que, no velório, o pai do assassino levantou a voz e afirmou com frontalidade desafiante: “O meu filho tinha a obrigação de verificar que tinha morto a mulher antes de pôr fim à vida.”

Este padrão da honra fálica escapa ao individualismo metodológico. O assassino obedece a um padrão que lhe foi incutido desde a infância e que é partilhado por uma população que espera dele o acto final de se suicidar depois de matar a companheira, se esta o “humilhar”, humilhando a população que espera que ele mantenha o padrão da dominação fálica radical. Neste contexto (existem outros), a honra manda matar a mulher, para apagar a vergonha da incapacidade de manter a dominação fálica, e manda o homem suicidar-se, para recuperar na morte a honra perdida.

O homem de honra não aguenta a perda da face, a humilhação pública, a desonra, que o obriga a reagir de acordo com as expectativas da comunidade que partilha estes valores. Não se trata de ciúme, nem de amor frustrado. O que está em causa é a honra viril, o orgulho fálico. Nestes casos, a relação entre homens, real ou imaginária, é muito mais importante do que a relação com as mulheres supostamente amadas. De facto, as mulheres, neste padrão fálico, não contam. A heterossexualidade, sendo uma ‘obrigação social’, promovida desde cedo pelo bullying sistemático dos ‘maricas’, tornados bodes expiatórios, fragiliza este tipo cultural de homem (existem outros) e o desemprego, a perda de poder económico ou a intenção da companheira recomeçar a vida, procurando outro companheiro, colocam-no numa zona de humilhação pública que o leva a recorrer à solução final – a morte de ambos, devolvendo a honra social ao assassino.

Quando se fala de prevenção a longo prazo, há que tomar em conta, na escola e desde cedo, a prevenção e correcção da educação cultural para a dominação fálica, actuada na escola pelo bullying infantil e adolescente e agir para instaurar a Educação para a Amizade. A meu ver, há que atacar frontalmente este padrão cultural entre adultos, através dos media, humilhando sistematicamente o assassino, com slogans como “UM HOMEM QUE ESPANCA UMA MULHER É UM COBARDE QUE ENVERGONHA TODOS OS HOMENS”.

Falta muita investigação, directamente dirigida a este padrão cultural, a este tipo de comunidade promotora do assassínio conjugal e a este tipo de homem, executor final de um projecto fálico de organização social, que continua activo e poderoso, apesar de actualmente recessivo. A investigação que falta não é certamente a prevista. Projectos que visam “prevenir estereótipos de género” ou “desconstruir noções de ‘masculinidade’ violenta” são projectos académicos, muito desviados do estudo das comunidades assassinas e do ataque directo, preventivo, à figura do assassino conjugal, desonrando-o antecipadamente.

Trata-se de trabalho para uma geração, cientificamente planeado por antropólogos e actuado por especialistas em comunicação social, que não dispensa a educação sistemática para a igualdade, para o respeito e para a amizade, desde a infância, nas escolas. O mal tem que ser prevenido desde cedo. E também passa pela reeducação dos pais violentos que tanto espancam os filhos como as mulheres, bem como de militares e polícias, instituições onde estes valores se ocultam.

O mal tem que ser cortado pela raiz. Sem um ataque directo, frontal e persistente ao futuro assassino (e indirectamente às comunidades que transmitem de geração em geração, como uma epidemia cultural, estes valores violentos da ‘honra’ e ‘vergonha’), os media continuarão a relatar regularmente, nas próximas décadas, novos casos, a Academia promoverá novos congressos sobre a violência conjugal e os aparelhos judiciais continuarão a mostrar-se ineficientes.

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