Da banalidade anestésica do crime

Falta saber o que esta sobre-exposição mediática ao delito traz à sociedade portuguesa: uma maior lassidão na forma como lidamos com o crime ou um aumento do grau de punitividade? Um aumento da insegurança real (objectiva) ou apenas da subjectiva ou percepcionada? É urgente que as escolas de Criminologia e os psicólogos da justiça nos ajudem nas respostas.

O crime está na moda, ou melhor, o espectáculo em volta dele está-o. E o fenómeno não é de agora. Arrisco-me a dizer que existe desde o momento em que o primeiro delito foi cometido e desde que a primeira noção de que certos comportamentos são comunitariamente inadmissíveis surgiu. Claude Lévi-Strauss, o famoso antropólogo, nas suas investigações em África, julgou encontrar na verificação de que o incesto conduzia a seres humanos deficientes a primeira lei criminal e, por isso, uma norma proibitiva. Sabe-se há muito que esta concepção é cientificamente errada e que tal como qualquer outro ramo de Direito, o Penal surgiu quando existiu o primevo contacto humano e posterior urgência na regulação das esferas jurídicas de cada um.

É, o crime, não uma tendência, mas uma perenidade. Continuará sempre a existir e a suscitar o interesse de todos. Por definição, em maior ou menor grau, todos somos voyeuristas e gostamos do macabro e do que significa o incumprimento normativo. Em regra, e bem lá no fundo, continuamos animais e retiramos prazer dos sentimentos associados ao desvio, ao inadimplemento de quaisquer normas, principalmente as jurídicas, por terem a garanti-las a coacção organizada do aparelho estatal. Daí que toda – ou quase toda – a comunicação social dedique largo tempo e meios humanos e financeiros às notícias sobre a prática de crimes. E ao seu comentário, quase sempre “pseudo-comentário”, ao ponto de existir uma normalização delituosa: um programa de TV da manhã tem de ter qualquer coisa como uma “crónica criminal”. A sujeição diária a tais fenómenos tem vantagens e inconvenientes, como tudo na vida. Mas, de entre os últimos, abunda a criação de um sentimento anestesiante face ao desvio. É certo que ele é tão natural e normal quanto a vida regrada. Longe vão os tempos em que Lombroso e seus discípulos acreditavam num criminoso nato ou atávico, reconhecível por particulares caracteres anátomo-morfológicos. Como temos assinalado, nunca deixamos, até hoje, de procurar no delinquente algo de diferente de nós: as condições psicológicas, sociais, de contexto, de etiquetagem, de genética forense ou as modernas neurociências. Tudo votado ao insucesso, pois delinquir é tão natural como existir e o desvio há-de ser sempre um complexo bio-psico-social.

Faltam estudos em Portugal sobre o efeito de imitação de comportamentos desviantes, embora os estrangeiros nos digam, genericamente, que ele é mais um mito: tende-se a seguir exemplos socialmente aceites e que assegurem um grau de prazer e aceitação social maior, o que não sucede com o crime. Também falta saber o que esta sobre-exposição mediática ao delito traz à sociedade portuguesa: uma maior lassidão na forma como lidamos com o crime ou um aumento do grau de punitividade? Um aumento da insegurança real (objectiva) ou apenas da subjectiva ou percepcionada? É urgente que as escolas de Criminologia e os psicólogos da justiça nos ajudem nas respostas.

Só assim poderemos intervir, se necessário for, no aumento da regulação (de preferência auto e não hetero) dos mass media, no modo como as notícias associadas ao crime são divulgadas e no estabelecimento de limites às imagens que passam. Já em vários casos concretos o Código Penal, o Estatuto dos Jornalistas, a Lei da Imprensa e a Lei da Televisão contêm disposições sobre o tema, olimpicamente ignoradas amiudadas vezes.

Pela normalidade acima assinalada da paixão pelo patológico, pelo exorcismo através dos outros daquilo que de pior existe em nós, haverá sempre incumprimento destas e de outras regras. Todavia, se se mantiver o curso que vimos seguindo, em Portugal e no mundo, algo de semelhante acontecerá (ou acontece já) a um episódio por todos nós já experimentado: quando vemos crianças dilaceradas em qualquer conflito, entre duas garfadas ao jantar, a comida continua a cair-nos bem. É longe, é habitual, é quase tão natural quanto saber o boletim meteorológico e daí o convite à inacção. A “banalidade do mal” de Hannah Arendt não está em grandes guerras, em conflitos mundiais ou quase épicos, mas no modo como lidamos, dia-a-dia com pequenas coisas, como os casos de violência doméstica. Anestesiados. É um problema dos outros. Bom, mas tudo isso é tema para outra reflexão.

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