Espólio não literário de José Cardoso Pires doado à Torre do Tombo

Documentos da resistência ao Estado Novo, cartas, fotografias, recortes de jornais e processos judiciais integram este espólio, que permite dizer que o escritor "estaria a preparar um trabalho grande sobre a PIDE", acredita Silvestre Lacerda, director do Arquivo Nacional.

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José Cardoso Pires DR

Os familiares de José Cardoso Pires (1925-1998) doaram ao Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), em Lisboa, um espólio não literário do escritor, que inclui cópias de autos da polícia política do Estado Novo e fotografias, entre outros documentos.

Em entrevista à agência Lusa, o director do ANTT, Silvestre Lacerda, explicou que na sequência de uma exposição ali realizada no ano passado, alusiva aos 20 anos da morte do autor de Balada das Praia dos Cães, a família entregou os dossiers de estudo do escritor. "A família entregou-nos os dossiers de estudo, porque os dossiers e os manuscritos literários estão na Biblioteca Nacional de Portugal", esclareceu Lacerda.

Do espólio doado fazem parte publicações como O Cacete ou o comunicado do Movimento de Unidade Democrática (MUD)-Juvenil​ relativo à morte do estudante universitário de Direito José Ribeiro dos Santos, emitido a 12 de Outubro de 1972, que acusa os agentes da PIDE de assassinato.

O espólio inclui ainda cartazes como o da Queima das Fitas de Coimbra de 1969, realizada em ambiente de luto académico, como assinala a tarja preta, ou uma carta enviada ao então Presidente da República, defendendo maior liberdade de expressão e contestando a apreensão de obras literárias.

O abaixo-assinado, enviado ao então chefe do Estado, Américo Thomaz a 27 de Janeiro de 1967, conta com as assinaturas, entre outros, de intelectuais como João José Cochofel, Carlos Oliveira, Rui Grácio, Raul Rego, José Gomes Ferreira e Augusto Abelaira, além da de José Cardoso Pires.

A documentação doada inclui ainda fotografias, nomeadamente da prisão do então director da PIDE, Silva Pais, e vários manuais da escola técnica daquela polícia, que foram oferecidos a Cardoso Pires no âmbito de uma visita de escritores, em Maio de 1974, às instalações centrais da PIDE, em Lisboa.

Bilhetes de espectáculos, recortes que ilustram a censura prévia feita à imprensa e a todas as publicações, a cópia do relatório da morte do artista plástico José Dias Coelho (1923-1961), que era funcionário do PCP, na clandestinidade, e foi assassinado numa rua de Lisboa, fazem também parte do conjunto entregue. Entre outros documentos, contam-se ainda partes do processo judicial que levou à deportação de Mário Soares (1924-2017) para a ilha de São Tomé.

Os dossiers, devidamente catalogados e identificados pelo escritor, reúnem documentação que Cardoso Pires poderia vir a utilizar num trabalho literário ou jornalístico, alvitrou Silvestre Lacerda. "Trata-se de documentação que ele estava a recolher para, eventualmente, a sua actividade criativa ou jornalística", disse o director do ANTT, considerando que o escritor "estaria a preparar um trabalho grande sobre a PIDE".

A documentação entregue pela família de Cardoso Pires inclui também um dossier sobre a Frente de Acção Popular (FAP), que foi fundada, em 1964, por Francisco Martins Rodrigues (1927-2008), em Paris, e que inclui nomes como Rui d'Espinay (1942-2016) e João Pulido Valente (1926-2003).

Além desta doação, no ano passado, o ANTT incorporou no seu espólio, por aquisição, um conjunto de 340 desenhos de cartoonistas e ilustradores portugueses, nomeadamente, Jorge Rosa, José Ruy, José Antunes, J. Godinho, Agostinho (ou Vasco), Carlos F. Mendes, Armando Anjos, Santal, Oliveira Pinto, Manel, J. Gomes, João Vieira, Sampaio (ou Asa), Arlindo Vicente e Mário Oliveira, e inclui ainda 97 desenhos não assinados da década de 1950.

Dezoito incorporações em 2018

O ANTT registou, no ano passado, 18 incorporações de documentação, entre doações, aquisições e depósitos, revelou também Silvestre Lacerda à Lusa.

O único depósito foi efectuado em Março, pelo período de 30 anos, do Arquivo Valle e Sousa de Menezes (1544-1867), de uma família ligada à administração do Estado Português da Índia e a João de Castro (1500-1548), cartógrafo e quarto vice-rei da Índia.

O director da Torre do Tombo esclareceu que foi assinado um protocolo com a família que permite que a documentação seja colocada à consulta dos investigadores. "Ao fim desse tempo, a família pode decidir retirar a documentação, ou, o que tem acontecido sistematicamente, renovamos o protocolo", explicou o responsável.

Durante a vigência do protocolo, dependendo do acordado, o ANTT poderá apresentar a documentação em exposições, digitalizá-la, tratá-la e até fazer intervenções de restauro. Se houver restauro e os proprietários receberem de volta a documentação, pagam essa intervenção especializada, diz Silvestre Lacerda.

Entre a documentação incorporada no ano passado está também uma doação de duas caixas com documentos e fotografias (1890-1942) da família Anjos Vaz, relativos à organização económica e administração de propriedades rurais. Outra doação foi constituída por dois dossiers com documentos de 1799 a 1948 da família Novais Castilho, ligada à actividade de despachantes oficiais e à navegação no Porto de Lisboa. Relativo ao porto da capital, o ANTT recebeu por doação de um particular 75 livros referentes ao Registo de Entradas de Navios (1880-1973).

Além de doações, o ANTT adquiriu, em Dezembro último, a um particular, 12 caixas com cerca de quatro mil documentos, que incluíam a correspondência trocada entre o diplomata João Camelo Lampreia e várias figuras da política e das culturas portuguesa e brasileira (1883-1922). Outra aquisição feita é constituída por cartas de Teresa de Sousa Holstein, filha do duque de Palmela, para o seu futuro marido, o conde de Vila Real, José Luís de Sousa, e um pergaminho do século XV sobre a vila de Óbidos.

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