Um manual para errar o caminho

Na escrita de Rui Pires Cabral a poesia é um mistério insanável. A irresolução, a incompletude, o desconhecido são admiravelmente tocados pelos seus poemas. Eles são como uma bainha que ocultasse toda a lâmina depois dos mais avassaladores golpes.

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Rui Pires Cabral tem vindo a pôr em prática o princípio de casa a poesia com a colagem DR

Numa nota inicial de Biblioteca dos Rapazes (Pianola, 2012), Rui Pires Cabral (RPC) informava o leitor que “a ideia fundamental” daquele livro fora “a de casar a poesia com a colagem”. Desde aquele título da sua obra, RPC tem vindo a pôr em prática esse princípio, com os livros Broken (Paralelo W, 2013), Álbum (Nenhures, 2013) e Oh! Lusitania (Paralelo W, 2014). Estes correm à margem da poesia que o autor coligiu em Morada (Assírio & Alvim, 2015), onde parecem abrigar-se, por enquanto, todos os poemas que RPC escreveu apenas como texto verbal. Dos restantes livros, de que Manual do Condutor de Máquinas Sombrias é o mais recente, não se pode dizer o mesmo. Os poemas são, aqui, sempre uma circunstância verbal e icónica — palavra e imagem, indissociavelmente. E talvez fosse mesmo ilegítimo propor que são verdadeiros pretextos, os materiais concretos de que se faz este núcleo da poesia de RPC. Porque, na leitura destes seus poemas, nunca sobrevive a noção de que valham por si só, isoladamente, os elementos que concorrem para a construção que é o texto poético. Uma fotografia abandonada, que o autor resgatou, um pedaço de provas fotográficas, uma fotografia, ou conjuntos fotográficos, são ingredientes que assimilaram uma função que nos parece ter existido desde sempre. Mesmo sem ceder à miragem de qualquer predestinação, o acaso é, realmente, uma hipótese de trabalho, uma perspectiva possível. Ou talvez haja que concebê-lo (o acaso) como fonte de desejo, como solicitação imponderável, indefinível: corpo fugidio que sempre se pretende alcançar sem nunca chegar a conhecê-lo. “Eu só queria o acaso / de um livro/ de espuma” eram, por exemplo, os versos inaugurais de Broken. No caso de Manual do Condutor de Máquinas Sombrias, o título, obscuramente belo, de um livro que se procurou, ou se achou, joga com a tensão resultante do confronto entre a possibilidade do acaso e a insinuação de um projecto silente e secreto. Os poemas de RPC posicionam-se sob o “breu das estações”, desprotegem-se, ainda que se afigurem seguidores de um chamado inaudível, enigmático. E mesmo artifícios textuais como as barras e a dupla barra, a indicar mudança de verso ou de estrofe, não podem deixar de ser simples manobras tentadas. Deveremos, por exemplo, considerar que constitui uma estrofe, no sentido convencional, cada célula/imagem de uma prova fotográfica, na qual se eldiram os olhos num rosto de homem, com dois versos? Assim se fará, na seguinte transcrição (integral), proposta mais para efeitos de amostragem, do que em consequência de uma certeza, ou necessidade desta representação verbal do que é uma totalidade irredutível imagem-texto — “os dias/ acusam// o erro/ constante,// manobras/ propícias// ao logro/ ao veneno// e o pior/ é a alma,// há sempre/ uma alma// às escuras,/ por isso// pergunto:/ esta cantiga// tem de continuar” Nestes poemas existe, então, uma arte plástica tanto quanto uma escrita em sentido mais estrito. A composição de cada página, o modo de dispor cada verso, literalmente, sobre imagens repetidas, a aparência de elisão que se dá a ver em cada verso, dactilografado sobre a imagem, a coloração rubra do dístico derradeiro, são, todos eles, elementos de uma poética que é uma escrita e uma plasticidade, efectiva e operante sobre o todo que é o poema.

Estes poemas não encaram o mistério como uma força a combater, ou dilucidar; encontram-se com esse desconhecido, por si criado, como se estivessem em face de uma necessidade. Não se trata tanto, volta a dizer-se, de uma perspectiva fatalista, mas antes de uma inevitabilidade debatida quase de forma neutral, desapegada de algum modo — “que ideia de amor que promessa/ de vida,// se uma parte de nós/ esteve sempre/ perdida// e outra parte,/ a mais terna/ tombou no caminho// ente duas iguais/ madrugadas/ de chuva?” Um poema (citado na íntegra) que se ergue por entre escombros, no meio desse “ferro-velho” do coração de que falava um poema de Yeats, e cujos espaços deixados em branco como segregam a eventualidade insólita de um horizonte de possibilidades. Como se estranhos ciclos se propusessem, uma espécie de eterno retorno que os versos se limitam a perscrutar, sem quererem realmente entender. Já em Broken líamos: “O tempo corria/ para o lugar de onde viera”. Em Manual do Conduto de Máquinas Sombrias, podemos ler: “tu já és o espelho do que vais perder”.

Uma das imagens que mais poderosamente capturam o espírito desta poesia encontra-se em dois versos: “uma ribanceira/de papel ardido”. Trata-se de um poema que recupera a imagem, nuclear em muita da poesia de RPC, a da “voz dos náufragos”. É um ecossistema já fixado indelevelmente nuns versos de Biblioteca dos Rapazes — “um azul/ tão frio, tão escuro,// no fundo do mar”. O mar, a navegação, os embarcadiços, são elementos que actuam de modo espectral nestes versos, que se deixam assombrar por estranhas personagens, perpétuos passageiros do trânsito sempre imprevisível que é a vida. A notação de uma “ribanceira”, com a possante sugestão de queda, de um perigo iminente e contínuo, associa-se à qualidade “artificial” do papel, isto é, da arte, da representação. Daquilo que torna, inevitavelmente, filtrada, diferida, toda a experiência humana feita arte. O elemento ígneo como que une todos os outros, deixando supor um lume que não redime, mas habita, como um segredo, o interior insondável das coisas e dos seres. A persistência da matéria marítima faz dos seus ocupantes um reflexo perturbador do sujeito da escrita e do vasto mundo que os seus versos apenas deixam entrever — “longos anos estiveram/ ausentes, em viagem// as coisas que dizem/ e o frio que trazem// estão dentro de nós.// esperam-nos”.

Procura furtiva de um outro eco, e do eco de certa alteridade nunca nomeada, estes poemas são uma indeterminação com uma beleza inquietante e que atinge registos extremos entre a algidez e o abrasamento, entre a contenção e a expansividade (sempre impiedosamente vigiada, esta) — “sou o que não és/ o que não/ foste// o que não/ pudeste ser// na escrita,/ na cama/ na boca/ do espelho”. A brevidade de cada verso fere uma nota afirmativa mas reticente, que revela para logo ocultar, que sugere a interpelação e o colóquio sem nunca o afirmar plenamente. Não é bem um jogo de sombras, mas a persistência da escuridão mesmo sob os faróis mais cegantes — “em baixo, no passado, onde a luz/ se gasta, põem-se outras sombras/ a sangrar”. De resto, o título do livro de RPC acrescenta o adjectivo “sombrias” à sua “matéria-prima”, conforme se lê no colofão: Manual do Condutor de Máquinas. Por conseguinte, um tratado, uma norma, um mapeamento definitivo, tornou-se sombrio, turvou-se, ganhou o sortilégio perturbante da poesia. E é tanto uma outra espécie de prece a que segredam certos versos deste Manual para “errar o caminho” (como se lia em Biblioteca dos Rapazes): “Nosso Senhor/ é uma máquina/ de fazer sombras”.

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