Ela não gostava de música

Não gostar de música seria quase o mesmo que não ter memórias: a música que nos faz lembrar uma viagem, uma pessoa, uma época da nossa vida. Pensando naquela entrevista com Hermeto Pascoal, não gostar de música seria quase como não gostar de qualquer som à nossa volta.

Eu devia ter uns 12 anos, não posso precisar. Ele estava de óculos de sol, com a sua longa barba branca, sentado num cadeirão no hotel. Nós sentámo-nos à volta dele, eu sei que fiquei no chão. Éramos um grupo de adolescentes, eu era a mais nova, fomos levados até lá por uma professora de Português, como nunca conheci outra igual. Fiquei no chão de pernas cruzadas e os mais velhos é que fizeram as perguntas todas — sobre o que era música, sobre se acreditava em Deus... —,​ eu não abri a boca e, no entanto, considero aquela entrevista a Hermeto Pascoal a minha primeira entrevista.

Fomos levados em grupo por essa professora, que nos punha a escrever poemas, a subir a montes, a ver o Outono no recreio da escola, e a ideia era fazermos uma entrevista para um jornal da cidade. Assim foi. O nosso misterioso entrevistado, Hermeto Pascoal, que creio que ia tocar no Guimarães Jazz, falou com entrega sobre cada uma das nossas questões. Eu, já disse, fiquei muda quando o vi, mas ainda assim, na minha memória, ele respondeu a todas as minhas interrogações. 

Já foi há muitos anos e, infelizmente, não creio ter a entrevista guardada, mas, se a memória não me falha, o título era “Tudo é música”. Ele falou, falou imenso. Na minha cabeça, foram horas de conversa — eu não só não abri a boca, como não desgravei uma linha. Mas alguma coisa naquela conversa foi de tal forma impressiva e reveladora que eu nunca me esqueci. Não me esqueci de o ouvir contar como se inspirava em todos os sons que o rodeavam. Tenho ideia de ele falar no coaxar das rãs, mas aqui a minha imaginação e alguma lógica fazem o resto. O barulho dos lagos à noite, o pio das corujas, as conversas dos outros, como diz a música, as gargalhadas, o silêncio de um sol de manhã muito cedo, por que não? Tudo à nossa volta é música, ou pode ser música. Os mais pequeninos sons. Tudo à nossa volta é extraordinário, ou pode ser extraordinário. Os mais pequeninos acontecimentos.

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Muitos anos depois desta minha primeira entrevista, em que não abri a boca (um mal que tive de resolver à pressa como jornalista), conheci um músico que me contou que sabia de uma pessoa que garantia não gostar de música. Não gostava, pronto. É como alguém que nos diz que não gosta de ler, não gosta de literatura, não gosta de cinema, ou de teatro. Parece tudo estranho, mas o espanto redobra-se quando o assunto é música. Não gosta de música? Assim no todo?

Esse músico, que tocava guitarra, contrapunha que tal era impossível, que toda a gente gosta de música, e eu estou com ele. Não me parece possível. Não gostar de música seria quase o mesmo que não ter memórias: a música que nos faz lembrar uma viagem, uma pessoa, uma época da nossa vida. 

Pensando naquela entrevista com Hermeto Pascoal, não gostar de música seria quase como não gostar de qualquer som à nossa volta. Eu não gosto de buzinas, nem de motas que aceleram. Mas gosto de muitos outros barulhos. Gosto do tic-tac das máquinas de escrever antigas, fazem-me lembrar as noites da minha infância. Agora até gosto do ritmo dos ponteiros do relógio e da música que dá nas horas certas, recorda-me a casa dos meus avós. Gosto tanto do arrulhar dos pombos nas janelas de Lisboa, fico logo criança outra vez. Lá no prédio, ponho-me a ouvir o som do elevador, dá-me a ilusão de que vem aí alguém de quem gosto. E espreito os colegas da rádio a gravarem o som do vento ou dos passos de alguém, quando estamos em reportagem. Também tenho saudades de ouvir as unhas da minha cadela velhinha a baterem no chão de madeira, tic-tic-tic. À distância, até fico com ternuras quando ouço o peluche da minha filha que dá música para adormecer, quantas horas passei naquele embalo. A minha filha, aliás, começou a dançar antes de falar. Mas também gosto de alguns céus escondidos do Alentejo à noite —​ em Lisboa nunca vejo aquele silêncio, nem tantas estrelas. Tudo é música, ou tudo pode ser música. Não gostar de todo dela é abrir mão de uma parte tão boa nisto de estarmos vivos. De estarmos vivos e de podermos dançar.

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