Movimento 5 Estrelas: a democracia directa e o formigueiro

Arauto da democracia directa, o M5S é paradoxalmente dirigido pelo “proprietário”.

Reserve as sextas-feiras para ler a newsletter de Jorge Almeida Fernandes sobre o mundo que não compreendemos.

1. Numa época em que os partidos estão em declínio e cresce a suspeição sobre a política, o Movimento 5 Estrelas (M5S) assumiu-se como modelo alternativo, sob o signo da democracia directa. Escreveu em Março do ano passado, no Washington Post, o seu mentor, Davide Casaleggio: “A democracia directa, tornada possível pela Internet, deu a centralidade aos cidadãos e levará, a seguir, à desconstrução das actuais organizações políticas e sociais. A democracia representativa — a política com representantes — está gradualmente a perder significado.” É esta promessa de democracia directa que o texto de hoje pretende questionar.

O M5S não é um fenómeno marginal. Fundado em 2009 (na prática remonta a 2006), chegou ao poder em dez anos. Subverteu o mapa político italiano. Era um “não-partido” regido por um “não-estatuto”. Entretanto transformou-se, de facto, num partido em que a organização basista e horizontal encobre um poder personalizado. O “proprietário” controla a máquina partidária. Em termos de transparência, parece mais opaco que os partidos tradicionais. 

2. O rosto do M5S começou por ser o comediante Beppe Grillo, que depressa se identificou com o papel. O M5S era o partido de Grillo — o grillismo e os grillinni. A primeira estrutura do movimento foram os “MeetUp Amici di Beppe Grillo”. Era ele quem, no seu blogue e nas praças, animava a revolta. Era quem os activistas e os eleitores conheciam. Perante a degradação do sistema político e uma gigantesca desconfiança nas instituições, “Grillo transformou em política a indignação moral”, resumiu o investigador Piergiorgio Corbetta. Esta tradução política será a força propulsora do M5S. A sua demagogia populista e a sua estudada grosseria, em vez de rejeição, produziram empatia. Sem o carisma de Grillo, o movimento não teria sequer nascido. 

No entanto, por trás de Grillo, havia um guru, o verdadeiro inventor do movimento, Gianroberto Casaleggio (1954-2016), que escrevia os textos do blogue. Era um informático visionário, fanático da ficção científica e que gostava de fazer vídeos apocalípticos. Fascinou Grillo na noite em que se conheceram, no teatro Goldoni de Livorno, em 2004. 

Gianroberto propunha-se revolucionar a política italiana. Era realista quanto à democracia directa, só praticável em pequenas comunidades e em assembleia, lugar de debate e deliberação, e não em sociedades complexas. Recorreu ao argumento da tecnologia: a Internet poderia pôr grandes comunidades, países inteiros, a debater e a deliberar em rede. Daqui a ideia de um movimento organizado sob a forma de uma rede de MeetUp (grupos digitais de discussão) em torno de um blogue e de uma plataforma digital — hoje chamada “Rousseau”, em homenagem a Jean-Jacques Rousseau. 

Gianroberto morreu e passou o testemunho ao filho, Davide Casaleggio. Grillo “divorciou-se” de Davide no fim do ano passado. Em 2014, fora criado um directório de cinco “notáveis”, mas dissolvido em 2016 em nome do princípio “é a Rede quem decide de tudo”. Em 2017, Luigi Di Maio foi eleito chefe político (capo politico), numa eleição controlada: foi escolhido por Davide e os concorrentes do antigo directório abstiveram-se de o desafiar.

Di Maio tem um clã de amigos mas não tem uma base própria de poder. Quem tem as chaves do “Rousseau” (e do poder) é Davide. É presidente da empresa familiar, a Casaleggio Associati, e da Associação Rousseau, entidade criada pelo pai, dias antes de morrer, para assegurar o controlo do filho sobre o projecto. Tem como finalidade “promover o desenvolvimento da democracia digital e de coadjuvar o M5S” na sua acção política. Controla, por sua vez, a “Plataforma Rousseau”, sistema nervoso do movimento. 

3. O modelo foi blindado pelos novos estatutos, em Dezembro de 2017. As votações dos militantes, os debates ou a apresentação de propostas de lei são todos feitos através da plataforma “Rousseau”, inteiramente controlada por Davide. Armazena, de resto, todos os dados pessoais dos inscritos. A Associação Rousseau é financiada pelas quotas de 300 euros mensais de todos os parlamentares. 

Observa o jornalista Luciano Capone, do Il Foglio, que investigou o “Rousseau”: “O primeiro partido italiano está assim amarrado de pés e mãos — jurídica, económica e tecnologicamente — a uma associação privada sobre a qual não tem nenhum poder de orientação ou controlo.”

Acrescenta o politólogo Damiano Palano: “Parece-me inédito. Partidos-empresa há muitos, sabemo-lo bem na Itália, mas quem tem as funções directivas é também um líder visível do partido. Por isso o papel de Casaleggio, na sombra, é uma anomalia.” Mas terá as suas vantagens. Se “o governo correr mal”, a responsabilidade será de Di Maio e dos ministros. 

O estatuto prevê o processo de destituição do chefe político. Mas não está prevista nenhuma forma de desvinculação da associação de Casaleggio. Já não se trata da ficção de democracia directa, mas do controlo democrático do titular do poder. 

O modelo intriga a imprensa internacional. O Financial Times e o New York Times tentaram, em vão, entrevistar Davide. Ele só dá entrevistas que possa controlar. Mas investigaram. “O silêncio é uma das suas melhores qualidades”, disse o New York Times, que o definiu como o “feiticeiro de Oz” do movimento. “É, potencialmente, o homem mais poderoso da Itália, embora raros saibam quem ele é. Os embaixadores estrangeiros procuram-no, apesar de não ter qualquer cargo público.”

4. No livro Tu Sei Rete (Tu És Rede, 2013), Davide Casaleggio esboçou uma reveladora sociologia das organizações. “Quando um sistema aumenta a sua complexidade sem ser guiado por uma fonte externa, tende com o tempo a organizar-se por si mesmo. (...) Os formigueiros representam o melhor exemplo de auto-organização. As formigas seguem uma série de regras aplicadas aos indivíduos, através das quais se determina uma estrutura muito organizada, mas não centralizada. O sistema começa a adquirir a sua identidade e a influenciar os seus componentes. (...) É necessário que os componentes sejam em número elevado, que se encontrem casualmente e não tenham consciência do sistema no seu complexo. Uma formiga não deve saber como funciona o formigueiro, de outro modo todas as formigas ambicionariam desempenhar os melhores papéis e os menos fatigantes, criando um problema de coordenação.”

Sugerir correcção
Ler 15 comentários