Ele "motorista", ela "cozinheira de alto nível". O que há de discriminatório neste anúncio?

Anúncio que pede um casal de caseiros com múltiplas funções e sem filhos a cargo correu as redes sociais e não foi pelas melhores razões: o seu conteúdo é discriminatório.

Foto
Sebastião Almeida

Ele deve servir as funções de “motorista”, “mordomo” e “assistência e manutenção das viaturas”. Ela deve ser uma “cozinheira de alto e requintado nível” e tratar de “todo o serviço doméstico”. Assim estão descritas algumas das funções de um anúncio de emprego de um “casal para serviço doméstico” que saiu na edição impressa do PÚBLICO desta sexta-feira. O anúncio correu as redes sociais e não foi pelas melhores razões: o seu conteúdo é discriminatório.

Além das várias competências descritas, discriminadas por género através de pronomes, o anúncio — que continuará a aparecer nos classificados do jornal durante um total de três dias — exige ainda que os candidatos não tenham “filhos ou outras pessoas a seu cargo durante o exercício das suas funções”. Em troca oferece um “bom ordenado” e um “apartamento privado no interior da residência”. Em 2013, o mesmo anunciante colocou uma publicidade semelhante no PÚBLICO, tipificando também as tarefas de acordo com o género, mas para uma propriedade particular nos Estados Unidos e residência em Londres.

Foto
D.R.

Logo pela manhã, a Capazes, uma associação feminista, publicou no Facebook uma fotografia do anúncio, lançando aos seguidores o desafio de apontar aquilo que estava errado no anúncio. “Qualquer pessoa que tenha o Código do Trabalho em casa consegue apontar pelo menos, 5 ou 6 artigos que este anúncio atropela. O direito ao descanso, família, privacidade são apenas alguns deles!”, respondeu uma utilizadora. “Mas quem garante que de hoje para amanhã, uma mãe ou um avô precisa de ajuda? O trabalhador é dispensado porque passou a ter encargos?”, atirou outra.

O anúncio levanta algumas questões: existe discriminação de género? É legal exigir que não se tenha filhos ou pessoas a cargo “durante o exercício das funções”? Carlos Nunes, vice-presidente da Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego (CITE) afirma que o anúncio é discriminatório por distribuir as tarefas em função de género. Acrescenta ainda que pelo facto de o anunciante pedir a permanência numa residência e exigir que os candidatos não tenham descendência ou outras pessoas a seu cargo “está no fundo a limitar a liberdade dos trabalhadores”.

O PÚBLICO tentou contactar o anunciante através do e-mail disponível no anúncio, bem como através do número de telefone num anúncio idêntico publicado recentemente no OLX, mas não obteve resposta. A Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) ficou de se pronunciar sobre este caso por escrito, mas até ao momento o PÚBLICO ainda não recebeu essa informação.

Evolução da discriminação

Os dados da CITE, que todos os anos analisa centenas de anúncios de emprego, mostram que 15,58% dos 6886 anúncios revistos pela entidade em 2017 — os de 2018 ainda não são conhecidos —, foram considerados discriminatórios em função do sexo. Representa uma subida, ainda que ligeira, face a anos anteriores, justificada pela massificação dos anúncios em plataformas electrónicas e do consequente aumento do número de anúncios analisados, explica Carlos Nunes.

Embora o responsável aponte que tem havido uma “maior consciencialização” em relação às práticas de recrutamento discriminatórias, ao mesmo tempo, existem formas mais subtis de discriminação. Ou seja, ainda que um anúncio não seja explicitamente discriminatório, há sempre a possibilidade de a discriminação acontecer noutras fases do recrutamento.

A CITE actua em coordenação com a ACT, que pode desencadear um processo no caso da detecção de anúncios discriminatórios. O anunciante é primeiro alertado. “Se [o anúncio] for rectificado, geralmente o caso pára aí”. Se não, então está sujeito a multas. O problema é que, por vezes, a organização não consegue chegar ao anunciante, isso acontece quando os dados não estão disponíveis na plataforma em questão.

Um número que tem subido significativamente nos relatórios da CITE (de 150 para 281 entre 2016 e 2017) é o dos casos de sucesso, ou seja, quando a entidade responsável por um anúncio responde à CITE, “informando expressamente sobre a regularização da situação”. Carlos Nunes afirma que, regra geral, as pessoas têm respostas positivas e assertivas quando são notificadas. Lembra o caso de um anúncio que procurava costureiras: “Na cabeça dessa pessoa [pedir costureiras] não é por mal. Muitas vezes, as pessoas desconhecem a lei.”

O vice-presidente da organização sublinha, por isso, o papel pedagógico da actividade de fiscalização. “O que nos interessa é construir uma sociedade mais justa”, defende. Até porque, continua, “muitas vezes nem temos consciência da discriminação. Há coisas que estão tão cravadas na nossa mente que achamos natural”. Pelo facto de que algumas palavras darem a entender que se referem a um dos sexos (dá o exemplo de “talhante”), sugere que os anunciantes coloquem as siglas “M/F” ou usem outro tipo de linguagem inclusiva.

Trata-se então do caso de haver menos anúncios discriminatórios ou simplesmente de a discriminação estar escondida em formas mais subtis? Para responder a essa questão “temos de de ter outro tipo de dados que não temos”, afirma Carlos Nunes. “Se observarmos a realidade e se estivermos atentos aos discursos das pessoas” conseguimos ter uma ideia, acrescenta.

Foto
À esquerda ofertas de emprego da Net-Empregos e à direita anúncios do OLX

Segundo o vice-presidente da CITE, as plataformas não têm responsabilidade em relação ao conteúdo discriminatório dos anúncios — apenas o anunciante. Ainda assim, há algumas que por iniciativa própria o definem na sua política interna. Por exemplo, o LinkedIn “não permite anúncios que defendam, promovam ou contenham práticas de recrutamento discriminatórias (…) com base na idade, religião, etnicidade, raça, ou preferência sexual”, segundo a sua política interna. Já o OLX é mais específico, mencionando, nos seus termos de utilização os artigos 24.º e 30.º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei nº7/2009, de 12 de Fevereiro. “Os anúncios de Oferta de Emprego publicitados devem fazer sempre referência expressa à Sigla M/F e, devem abster-se de indicarem qualquer preferência por um dos sexos”, lê-se no site.

Sugerir correcção
Ler 37 comentários