Largar o liberalismo ‘identitário’ de Adam Smith

A esquerda não necessita ser recordada de Marx mas, talvez, muitos daqueles que mais à direita ainda mantêm uma certa abertura a discutir estas questões precisem de perceber até que ponto a sua posição depende, desde o momento da sua formulação original, da perpetuação de injustiças hoje indefensáveis.

Não é por acaso que Adam Smith, procurando ilustrar com um exemplo tangível a mítica ação estabilizadora da ‘mão invisível’, recorre, em A Riqueza das Nações (1776), a uma descrição fantasiosa da realidade política africana: “Em comparação com o luxo extravagante dos grandes, as necessidades e pertences de um operário certamente parecem ser extremamente simples e fáceis e, no entanto, talvez seja verdade que a diferença de necessidades de um príncipe europeu e de um camponês trabalhador e frugal nem sempre é muito maior do que a diferença que existe entre as necessidades deste último e as de muitos reis da África, que são senhores absolutos das vidas e das liberdades de 10 mil selvagens nus” (A Riqueza das Nações, Primeiro Volume, Livro I, Capítulo I). Logo à partida, Smith necessita de introduzir no seu sistema ideológico um terceiro ponto de apoio, de forma a garantir que este não soçobra face à turbulência social que seria gerada pela tomada de consciência abrupta deste contraste gritante, entre a opulência escandalosa das elites metropolitanas e o pauperismo generalizado das classes trabalhadoras europeias que, aliás, a inflação provocada pelo saque imperial e colonial da América e das Caraíbas vinha agravando a olhos vistos. A distinção racializada ou ‘identitária’ entre elites brancas, europeias ou ‘civilizadas’, e os “reis da África”, senhores não de “camponeses trabalhadores” e “operários” mas, supostamente, de “10 mil selvagens nus”, torna-se portanto a caução ou o garante do nascente sistema liberal.

Desde então que ‘dar a ver’ ao povo as condições de vida em África se torna um ato de propaganda ideológica por excelência, central primeiro ao florescimento e depois à hegemonia das leituras do mundo inspiradas na Economia Política, de Smith e dos seus muitos herdeiros intelectuais. A história das ideias não se processou de forma diversa entre nós e, apesar de o nosso Iluminismo ter sido tardio, é de facto nas últimas décadas do século XVIII, por entre Viagens Filosóficas e a ação no terreno dos Governadores e Capitães-Generais inspirados pelas ideias das Luzes, que uma certa imagem do ‘Outro’ africano começa a ser veiculada com fins políticos, primeiro apenas por entre as elites imperiais. Então, os negros de África ora são apresentados, numa inflexão paternalista, como pessoas miseráveis e portanto necessitadas de uma tutela especial ou, então, como irremediavelmente entregues a um ócio desmesurado, proporcionado por uma terra tão cobiçada quanto pródiga. Com o liberalismo Oitocentista, e em grande medida em resposta à ação isolada de Sá da Bandeira, a necessidade de contrabalançar as leituras pessimistas da realidade económica do Império recorrendo a um breviário de ideias preconceituosas sobre os africanos negros vai-se generalizando, passando, devido à maior facilidade de publicação e ao maior alcance social das polémicas políticas, a incluir contributos oriundos das esferas média e alta da burguesia. Contudo, é apenas com o final do século XIX, e o advento dos periódicos ilustrados, das obras populares de divulgação científica e cultural, de autores prolíficos como Oliveira Martins, e dos salões e exposições coloniais (com seus infames jardins zoológicos humanos), que a política ‘identitária’ liberal se consolida num formato reconhecível como moderno, que terá impactos dramáticos na história do século XX – marcada como foi em África por conflitos étnicos entre grupos cujo ‘identitarismo’ foi cinicamente acirrado por potências coloniais e neocoloniais.

Quando a esquerda, quer seja herdeira mais ou menos distante de Marx ou não, lança a mão à bandeira identitária fá-lo contrariando o sentido desta torrente histórica, procurando denunciar e desconstruir, nunca repetir, a manobra de Adam Smith e dos partidários da ‘mão invisível’. De facto, são estes quem depende do ato de ‘dar a ver’ as populações racializadas como um ‘terceiro’ elemento, estranho e equidistante das classes trabalhadoras e das elites económicas. Esta manobra ideológica tem o propósito estratégico de prevenir o abalo sistémico que é provocado pela tomada de consciência de que as lutas coletivas das trabalhadoras e trabalhadores e aquelas dos indivíduos racializados são, em larga medida, coincidentes. A política identitária de esquerda passa por desmanchar a mistificação de Smith, demarcando o seu impacto histórico e possibilitando, num segundo momento, uma mais ampla frente de luta. 

Quando se discute hoje a restituição das peças africanas expostas nos nossos museus pós-imperiais, a repressão policial ou a representação de minorias racializadas nos meios de comunicação, o que se põe em causa é também a manutenção de um sistema assente na crença irracional no funcionamento da ‘mão invisível’ do mercado, que depende sempre da visualização do corpo negro, mesmo que de um “rei da África”, enquanto símbolo de um ‘Outro’ estranho, exótico e não plenamente merecedor dos direitos vitais e de cidadania mais básicos. Isto, como forma de justificar perante as trabalhadoras e os trabalhadores não racializados do ‘Ocidente’ a sua ‘relativa’ pobreza. A esquerda não necessita ser recordada de Marx mas, talvez, muitos daqueles que mais à direita ainda mantêm uma certa abertura a discutir estas questões precisem de perceber até que ponto a sua posição depende, desde o momento da sua formulação original, da perpetuação de injustiças hoje indefensáveis.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico​

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