Mais de 40 anos depois, enfermeiros voltam a ser alvo de requisição civil

Conselho de Ministros aprova medida alegando que os serviços mínimos não estão a ser cumpridos. Requisição civil tem efeitos imediatos, mal a portaria seja publicada. Em resposta, enfermeiros admitem faltar ao trabalho.

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NUNO FERREIRA SANTOs

O Governo decretou uma requisição civil para os enfermeiros. A medida tem efeitos imediatos, mal a portaria seja publicada, e vai funcionar no Centro Hospitalar Universitário de São João, Centro Hospitalar Universitário do Porto, Centro Hospitalar Tondela-Viseu e Centro Hospitalar de Entre Douro e Vouga. O Governo alega que nestes quatro centros hospitalares — dos sete abrangidos pela “greve cirúrgica”, iniciada a 31 de Janeiro — os serviços mínimos não foram cumpridos.

Os enfermeiros preparam novas formas de luta para responder ao Governo, que podem passar por faltar ao trabalho. O advogado Garcia Pereira já fez saber que vai representar um dos sindicatos que convocaram a greve em curso (o Sindicato Democrático dos Enfermeiros de Portugal) na contestação em tribunal da requisição civil. A partir desta sexta-feira entra em vigor um segundo pré-aviso de greve que atinge os centros hospitalares de Setúbal, Lisboa Norte e Universitário de Coimbra.

Prevista na legislação desde 1974, a requisição civil só pode ser usada para fazer face a situações de emergência ou quando está em causa o cumprimento de serviços de interesse público essenciais. A primeira vez que foi decretada foi a 16 de Março de 1976, também numa greve dos enfermeiros. José Azevedo, presidente do Sindicato dos Enfermeiros, recorda ao PÚBLICO que, nessa altura, a requisição era apenas para a zona sul do país. “A greve realizou-se entre 12 e 15 de Março e a requisição acabou por não ter efeitos. Era para o caso da greve durar mais tempo”, explica. Desde então, “não houve mais nenhuma para enfermeiros nem na área da saúde”.

“Face àquilo que é do conhecimento do Governo, de doentes cujas cirurgias foram canceladas nos últimos dias estando as mesmas abrangidas no âmbito dos serviços mínimos, face à gravidade desses adiamentos, não podia o Conselho de Ministros tomar outra opção, independentemente da data em que venha a conhecer o parecer da Procuradoria Geral da República [PGR]”, afirmou nesta quinta-feira a ministra da Saúde Marta Temido. A portaria será válida até ao final da greve (28 de Fevereiro).

O ministério aguarda resposta ao pedido de parecer complementar feito ao Conselho Consultivo da PGR “sobre quatro dimensões maioritariamente relacionadas com a licitude ou ilicitude do actual exercício da greve”. Entre as questões em análise está “a licitude do financiamento colaborativo” (uma plataforma de crowdfunding) que tem sustentado a greve destes profissionais.

Abandono de funções é crime

A presidente da Associação Sindical Portuguesa dos Enfermeiros, Lúcia Leite, alerta para o risco de surgirem agora novas formas de luta “mais incontroláveis”, ainda que não suportadas pelos sindicatos. Nas redes sociais há vários profissionais a sugerir dar faltas injustificadas até ao limite legal e Lúcia Leite admite que consigam organizar-se nesse sentido, lembrando que o Código do Trabalho prevê que qualquer trabalhador possa faltar cinco dias seguidos ou dez interpolados.

Nelson Cordeiro, do Movimento Greve Cirúrgica, que esteve na origem desta paralisação, também já admitiu que as faltas injustificadas em bloco podem vir a ser uma solução. “Já viu o que era todos faltarem ao trabalho ao mesmo tempo?”

Paulo Veiga e Moura, especialista em direito administrativo, diz que “a partir do momento em que a requisição civil é feita os trabalhadores têm de prestar serviço sob pena de serem objecto de processo disciplinar ou incorrerem na prática do crime de abandono de funções”. Este crime pode ser punido com pena de prisão de até um ano ou multa de até 120 dias. Mas para este especialista, esta requisição civil “é ilegal”.

“Só pode haver requisição civil se os serviços mínimos não forem fixados ou cumpridos. A ministra já começa a precaver a hipótese de alguém dizer que requisição é ilegal, dizendo que não estão a ser cumpridos serviços mínimos.” Opinião contrária tem António Casimiro Ferreira, sociólogo com experiência em tribunais arbitrais: “O Governo não tem alternativa à requisição civil. Do meu ponto de vista não é ilegal.”

Entre 1976 e 2014, data da última, os governos decretaram 30 requisições civis, segundo uma dissertação de mestrado de Maria João Carvalho Lopes apresentada na Universidade Católica. A maioria envolveu a área dos transportes.

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