Persistir no diálogo

Ainda se não pode dar por inútil uma via negocial e muito menos descartar liminarmente a oferta dada por uma personalidade com a envergadura e o peso do actual Papa.

O Parlamento Europeu e a maioria dos Estados-Membros da UE, entre os quais Portugal, reconheceram nos últimos dias o Presidente da Assembleia Nacional venezuelana, Juan Guaidó, como Presidente interino da República. Esta posição inusitada, pela aparente inexistência de precedência histórica, tem vindo a suscitar grande discussão. O assunto não é de tratamento fácil e convida a uma reflexão ponderada por parte de quem não está disposto a ceder a fanatismos e a representações maniqueístas. Tendo votado favoravelmente a resolução aprovada no Parlamento Europeu, e tendo mesmo sido seu subscritor, não anatematizo posições contrárias àquela que adoptei. Não será difícil reconhecer que estamos perante uma zona de dúvida e incerteza.

Qualquer abordagem séria do tema venezuelano tem de partir do reconhecimento da extrema gravidade da presente situação política, económica e social do país e do contributo decisivo de uma governação sob todos os pontos de vista calamitosa para que tal estado de coisas se tenha instalado. O socialismo bolivariano revelou-se objectivamente um desastre. Se, como aqui salientei na semana passada (“O Fracasso Venezuelano”, 31-01-2019), o chavismo não surgiu do nada e concorreu, em alguns aspectos, para a dignificação momentânea dos sectores mais pobres da sociedade venezuelana, a verdade é que na sua própria essência politico-doutrinária transportava desde o início as razões do seu inevitável declínio. Contrariamente ao que apregoa alguma esquerda viciada num antiamericanismo patológico, o falhanço do modelo bolivariano na Venezuela radica sobretudo em causa intrínsecas, não é o resultado nem de pressões nem de sanções externas.

Aceitando plenamente esta tese, há quem entenda, contudo, que se não justifica o reconhecimento de Guaidó como Presidente interino da Venezuela, alegando que tal procedimento viola normas do Direito Internacional e contribui para o exacerbamento da polarização política interna, podendo mesmo precipitar uma confrontação armada de consequências imprevisíveis. Ao reconhecerem Guaidó, os europeus estariam a tomar partido por um dos lados e a estimular a aversão de quem continua a deter o poder de facto no país. É uma posição que merece ser ponderada.

Sendo razoável, tal tese não me parece a mais correcta se considerado o objectivo de superação de um quadro reconhecidamente dramático e de restabelecimento, no mais curto prazo possível, de um regime plenamente democrático. A Venezuela vive num estado de excepção. Ora, quando se está num estado de excepção, os conceitos, normas e categorias tradicionais perdem pertinência e devem subordinar-se a um esforço de intelecção da singularidade do que está em causa e à opção pelos caminhos que melhor garantam a satisfação das pretensões mais importantes. O que hoje é de primordial urgência na Venezuela é sem sombra de dúvida a abertura de uma via para o regresso da democracia. Dada a obstinada recusa da Administração Maduro em fornecer qualquer sinal de predisposição para uma solução negociada, não restava ao Parlamento Europeu e aos países europeus outra opção que não fosse a de reconhecer Guaidó, na expectativa da imediata remoção dos obstáculos até agora impeditivos da restituição da palavra política à totalidade do povo venezuelano. Ao fazê-lo, parlamentares e governantes europeus tiveram plena consciência da particular complexidade da situação criada e, por isso mesmo, apelaram à promoção de um verdadeiro diálogo nacional e disponibilizaram-se para facilitar a sua concretização.

Apesar de uma coincidência formal de posições, há divergências substanciais entre os países europeus e a Administração Trump na abordagem desta questão. Várias declarações proferidas por altos dignatários norte-americanos deixam transparecer uma intenção sectária e mesmo belicista, que os países europeus não devem acompanhar. É por isso que a presença de representantes de vários governos europeus no grupo de contacto reunido em Montevideu constitui um facto da maior importância. Tudo tem de ser feito com o propósito de garantir uma evolução pacífica deste processo. Mesmo que, no final, a obstinação cega de Maduro e da sua guarda pretoriana não torne possível esse desfecho, devem ser prosseguidos todos os esforços na tentativa de evitar um confronto trágico.

O Papa Francisco, depois de ter recebido uma carta de Nicolás Maduro, manifestou disponibilidade para desempenhar uma função mediadora. Compreende-se que a oposição desconfie das reais intenções do tirano ainda instalado no poder e esteja cansada dos sucessivos expedientes a que ele tem recorrido para se furtar à sua obrigação histórica perante a crise que se vive no seu país: a de aceitar abandonar a função que exerce de modo ilegítimo e abrir as portas para a realização de eleições democráticas. Apesar disso, ainda se não pode dar por inútil uma via negocial e muito menos descartar liminarmente a oferta dada por uma personalidade com a envergadura e o peso do actual Papa.

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