Duplicidade e hipocrisia

A opção tomada pelo nosso Governo na Venezuela é errada e é totalmente incoerente.

Parece 2003 outra vez. EUA, Grã-Bretanha e Espanha ateavam a propaganda contra Saddam Hussein, descrevendo-o como o Hitler do séc. XXI, depois de o terem achado bom aliado contra o Irão. Na era das “intervenções humanitárias”, Bush pai explicava que não, não era pelo petróleo que os EUA queriam intervir no Iraque; era mesmo para salvar os curdos e os xiitas e destruir o arsenal de armas de destruição maciça que o Iraque teria na sua posse. O verdadeiro arsenal foi o de mentiras grosseiras que, lembremo-nos, também então se apresentaram como “verdades incómodas” para a França, a Rússia, a China, os pacifistas cobardes e a esquerda global, portadores todos de um incurável antiamericanismo preconceituoso, que “apoiavam” monstros como Saddam. O que fez o Governo português de então? Durão Barroso pôs-se em bicos de pés e, qual miúdo que se cola aos mauzões do recreio, afirmou-se do lado dos “aliados tradicionais de Portugal”, desprezando Direito Internacional, multilateralismo, ONU. Foi o que se viu. E ainda vê. Agora, Costa e Santos Silva decidiram copiar Durão/2003 e juntar-se a um ultimato ao governo da Venezuela que só pode piorar tudo e que decididamente arrisca uma de duas situações más, e uma pior que a outra: ou a intervenção militar estrangeira não autorizada pela ONU, ou a guerra civil.

A opção tomada pelo nosso Governo é errada e é totalmente incoerente. Por vários motivos. Para quem diz pretender privilegiar o Direito Internacional, o compromisso com as organizações internacionais e a rejeição da diplomacia de diretório (de potências que se arrogam unilateralmente o direito de governar o mundo), fez tudo ao contrário: aderiu a um ultimato decidido por outros e que, sem o apoio de 12 dos 28 Estados-membros, não representa uma posição da UE enquanto tal; reconheceu um autoproclamado presidente (Juan Guaidó) promovido por Trump, que invocou uma norma que não está prevista na Constituição venezuelana e imitou dezenas de candidatos derrotados em eleições que não aceitam (muitas vezes com razão) os resultados oficiais, criando situações (Guiné-Bissau, Moçambique, por exemplo) que, no passado, Portugal nunca reconheceu. Se o Governo quer fundamentar a sua atitude com o que entende ser o desrespeito pelos direitos humanos, pela liberdade da oposição, ou com a falta de limpeza das eleições na Venezuela – e tudo isto é discutível –, então pode começar a romper relações com, no mínimo, uns 120 ou 130 Estados à escala internacional. E comece por, pelo menos, dois membros da CPLP (Brasil e Guiné Equatorial), vários membros da UE (Hungria, Polónia, para não falar da Espanha e talvez da França) e por vários aliados na NATO (os anteriores mais a Turquia). Ficamos à espera da catadupa de declarações do MNE.

Se tudo isto se fez em nome dos interesses dos lusovenezuelanos, e se o MNE tem intervindo junto das autoridades venezuelanas a propósito de detidos que têm nacionalidade portuguesa, era bom que se começasse a preocupar com os muitos lusofranceses que há no meio dos 5500 detidos e os 2700 feridos pela repressão policial contra os “coletes amarelos”. Entre estes, Jérôme Rodrigues perdeu um olho por causa de uma a flash-ball policial. Pediu Santos Silva explicações ao governo francês sobre o facto? Ou, afinal, a preocupação do Governo é a de não descolar da opinião maioritária dos emigrantes na Venezuela, sobretudo dos que de lá saíram? Aceitar que sejam eles a determinar a nossa política externa, como aceitar que sejam os exportadores a determinar as nossas relações internacionais, é completamente enviesado. Há, é verdade, um precedente, mas ele foi responsável por uma das maiores vergonhas da diplomacia portuguesa: Cavaco recusou aplicar as sanções aprovadas pela ONU contra o Apartheid sul-africano pretextando que havia uma grande comunidade lusa naquele país que a elas se opunha. Hoje, o reconhecimento de Guaidó significa deixar de reconhecer o governo venezuelano em funções, o que, como é evidente, põe em risco a possibilidade efetiva de as autoridades portuguesas poderem atuar naquele país em defesa dos lusovenezuelanos.

Santos Silva ignorou o princípio que deveria reger as relações internacionais de qualquer Estado minimamente decente, sobretudo quando pequena potência que se quer fazer respeitar: o de, sobre os assuntos internos de um outro país, privilegiar o único âmbito legítimo de decisão internacional, a ONU. Apoiar o diálogo. Ser coerente. Pelo contrário, fez-se protagonista da duplicidade de critérios, da hipocrisia mais evidente.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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