A declaração de Abu Dhabi

O diálogo inter-religioso tem as suas exigências, já que para existir tem de funcionar nos dois sentidos e é incompatível com a violência, com a intolerância e com o fanatismo, precisando de mútua compreensão para nascer e para crescer.

O Papa Francisco efetuou uma visita histórica aos Emirados Árabes Unidos durante três dias tendo dela resultado a denominada “Declaração de Abu Dhabi”, assinada juntamente com o grande imã muçulmano, Ahmad Al-Tayy, condenando o terrorismo e a intolerância religiosa. Trata-se da primeira viagem de um Papa à península arábica, berço do islão.

Na declaração, divulgada num encontro inter-religioso promovido nos Emirados, sobre a fraternidade humana para a paz, pede-se a todos para que deixem de usar as religiões para incitar ao ódio, à violência, ao extremismo e ao fanatismo cego e se abstenham de usar o nome de Deus para justificar atos de assassinato, exílio, terrorismo e opressão. A declaração parte da crença comum em Deus que “não precisa de ser defendido por ninguém e não quer que o seu nome seja usado para aterrorizar ninguém”.

A Al-Azhar al-Sharif é a mais conceituada instituição teológica e de instrução religiosa do islão sunita no mundo e a mais antiga universidade islâmica, tendo sido construída em 969. Esta instituição e os muçulmanos do Oriente e Ocidente, juntamente com a Igreja Católica do Oriente e Ocidente declaram a adoção de “uma cultura de diálogo como caminho e cooperação mútua, como código de conduta e compreensão recíproca como método e padrão”.

Os signatários da declaração (Francisco e Ahmad Al-Tayy) esperam que a posição conjunta “una em seu redor intelectuais, filósofos, figuras religiosas, artistas, profissionais dos média e homens e mulheres da cultura para redescobrir os valores da paz, justiça, bondade, beleza, fraternidade humana e coexistência”.

Numa referência à “cidadania plena”, apela-se para as mulheres o “direito à educação, ao emprego, liberdade de exercer os seus direitos próprios e políticos, protegendo-as da exploração sexual e de serem tratadas como mercadorias, objetos de prazer ou do lucro”. Na declaração condena-se ainda todas as práticas que são uma ameaça à vida, como o genocídio, atos de terrorismo, deslocamentos forçados, tráfico de pessoas, aborto e eutanásia, bem como se condena as políticas que promovem essas praticas; que ninguém seja obrigado a aderir uma determinada religião ou cultura e ainda como proteção dos locais de culto – sinagogas, igrejas e mesquitas.

Este início do séc. XXI começa sob signo da globalização e consequente mistura dos homens e culturas que continua a aumentar cada vez mais, graças às novas tecnologias de informação. Os fluxos migratórios e o turismo põem em contacto culturas que apenas estavam próximas umas das outras geograficamente. É por isso que a humanidade, em toda a sua diversidade, deverá confrontar-se com o desafio civilizacional entre o islão e o ocidente.

Numa conferência organizada pela Fundação Calouste Gulbenkian, em 2003, juntando reputados especialistas internacionais, para dissertarem sobre a globalização, Mohamed Ibrahim El-Fayoumi, prof. de Estudos Árabes e Islâmicos, do Cairo (Egito), abordou, com muita clareza, as divergências existentes entre os intelectuais árabes, face à globalização e ao mundo ocidental. (cf. Globalização, Ciência, Cultura e Religiões, D. Quixote, 2003).

Alguns desses intelectuais recusam terminantemente a globalização, considerando-a expressão do espírito imperialista e colonialista do ocidente, resultante da revolução tecnológica e informática, com vista a acabar com identidade cultural dos países árabes. Outros acolhem-na favoravelmente, por considerarem que o comboio da globalização impõe desafios sem precedentes às nações e aos povos e que esse comboio não espera pelas nações indecisas e hesitantes do terceiro mundo.

Um terceiro grupo representa uma posição neutral e conciliatória, relativamente à globalização, defendendo a procura de uma forma conveniente que vá de encontro aos interesses e aspirações dos países árabes, de modo que a globalização ocidental, não podendo ser totalmente aceite, seja escolhido o que possa contribuir para o desenvolvimento dos seus povos. Finalmente, outra corrente, formada por intelectuais islâmicos e árabes, defende uma globalização islâmica que reforce os laços entre muçulmanos e preserve a sua religião, o seu património e dignifique a sua posição. Por isso, combatem qualquer modelo duma cultura única imposta pelo ocidente cristão, que não pode ser válida para todas as religiões e doutrinas. Dizem que o islão apela à globalização da qual possam usufruir todos os países islâmicos, económica e culturalmente, sem renunciarem aos princípios da religião, às tradições e aos valores islâmicos.

Não obstante estas diferenças, segundo o referido professor, existe entre os intelectuais árabes um denominador comum, relacionado com as preocupações e cautelas a ter com a hegemonia da globalização sobre os países subdesenvolvidos que possa conduzir à renúncia dos direitos políticos destes Estados, à cedência de exigências colocadas pelos países ocidentais, a nível económico, social e cultural, bem como à exploração desenfreada das riquezas nacionais, à provocação da violação das crenças, tradições e valores e à produção do domínio do modelo cultural ocidental.  

Afigura-se que a globalização, bem conduzida, pode transformar-se num fator positivo, contribuindo para o desenvolvimento e progresso efetivo dos países árabes e muçulmanos e não um fator nefasto que leve à imposição duma hegemonia e dum domínio de elementos estranhos e externos sobre os seus destinos, em detrimento dos seus direitos nacionais. A questão do relacionamento ao longo da história entre o Islão e o Ocidente reflete um profundo mau entendimento, envolto num total desconhecimento do Outro, porque esta questão jamais foi abordada no seu devido lugar, ou seja, à mesa de conversações verdadeiramente científicas, baseadas nos princípios comuns.

O diálogo inter-religioso tem as suas exigências, já que para existir tem de funcionar nos dois sentidos e é incompatível com a violência, com a intolerância e com o fanatismo, precisando de mútua compreensão para nascer e para crescer. Assim, uma atitude de mútua abertura e confiança das culturas deverá corresponder de nós o máximo de capacidade, enquanto seres humanos na procura da verdade e dos valores humanistas do terceiro milénio, uma vez que uma cultura só se pode compreender pela experiência da vida, no “confronto” entre o passado, o presente e o futuro. Esse “confronto” poderá ser equacionado do seguinte modo: procurar convergências, respeitar diferenças e atenuar divergências, de tal modo que a universalidade faça da tolerância um dever.

Todas estas considerações demonstram quão importante é o conteúdo da declaração de Abu Dhabi.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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