"Brexit"

Com poucas cartas na manga, o bluff de May de que um mau acordo é pior do que sair sem acordo algum arrisca-se a sair furado. E é isto, no fundo, que preocupa as pessoas.

"Brexit": substantivo masculino, criado a partir da aglutinação dos termos “British” e “exit”, para designar a potencial saída do Reino Unido da União Europeia em resultado do referendo de junho de 2016.

Lido assim, “Brexit” parece fácil de perceber. E de levar a cabo. Infelizmente, para os vários países que compõem o Reino Unido e para nós, portugueses, em especial para os portugueses que lá vivem e os ingleses que vivem em Portugal, o "Brexit" tem-se revelado tudo menos simples, fácil de realizar ou até de entender.

Comecemos pelas suas causas.

Poucos em Inglaterra parecem ter realmente entendido as razões que levaram mais de metade do eleitorado a escolher a saída da UE. Jeremy Corbyn, líder da oposição, parece acreditar que esta escolha representou uma rejeição da Europa globalizada dos nossos dias e o que realmente os ingleses precisam é de regressar aos anos 70. Corbyn nunca acreditou no projeto europeu como uma possível resposta aos desafios da globalização económica. Prefere, por isso, apostar tudo no princípio da soberania nacional. A história o julgará por isso. Como sempre, no entanto, a principal responsabilidade recai sobre aqueles que nos governam. A atual chefe do governo, Theresa May, também parece não parece ter percebido as verdadeiras causas do "Brexit". Ao repetir à exaustão a fórmula vazia e circular do “'Brexit means Brexit'”, May evita confrontar-se com a realidade. A realidade é que, em larga medida, o "Brexit" é uma criação sua. Apesar de ter feito campanha pela permanência na UE, a verdade é que foi May, como ministra da Administração Interna entre 2010 e 2016, a principal estratega da política de imigração mais restritiva desde o pós-guerra. A curto prazo, isto pareceu a melhor política para responder à ala mais conservadora e anti-europeísta do seu partido e neutralizar o UKIP. A médio prazo, porém, o seu discurso anti-imigração, repetido estridentemente pela imprensa tablóide, viria a tornar-se no epicentro da campanha pela saída da EU. Mas May, a devota filha de um vigário, não se limitou a esquecer-se da velha lição da Bíblia de que “quem semeia ventos, colhe tempestades”. Mas o que mais contribuiu para a percepção (factualmente errónea mas generalizada entre muitos) que a causa dos problemas das pessoas residia nas “hordas” de imigrantes que estavam a tomar Inglaterra de assalto a coberto da liberdade de movimento imposta por Bruxelas foram as decisões políticas de May, e dos governos de que fez parte. Foram estas políticas que, ao ignorarem o que realmente interessa ao conjunto da população como um todo (diminuir a pobreza, combater a desigualdade, modernizar as infra-estruturas, melhorar os serviços de saúde, facilitar o acesso à justiça), acabaram por possibilitar o "Brexit".

Um "Brexit" que se tem revelado impossível de levar a cabo. Pelo menos, nos termos prometidos: uma saída simples, rápida e indolor. O processo de negociação de saída da UE liderado por May tem sido tudo menos simples, rápido e indolor. Tem sido uma negociação pautada por constantes avanços e recuos. Para May, o que é hoje “impossível”, amanhã é “inevitável”. Com poucas cartas na manga, o bluff de May de que um mau acordo é pior do que sair sem acordo algum arrisca-se a sair furado. E é isto, no fundo, que preocupa as pessoas. Que confiança dá um governo a milhões de emigrantes que escolheram Inglaterra para viver, trabalhar e estudar quando esses emigrantes sabem que estão a ser usados como moeda de troca nas negociações com Bruxelas? E que mensagem dá esse governo aos milhões de britânicos que decidiram viver num dos 27 países-membros da União Europeia quando, por exemplo, não cuida de garantir o futuro do direito ao acesso à saúde nesses países? Seja qual for o desfecho das negociações, uma coisa é certa. O processo de saída da União Europeia vai ser um processo tortuoso que se vai arrastar ao longo de anos. Exatamente o contrário do prometido. E quanto mais demorar, mais o tacticismo, incompetência e falta de sentido de Estado com que o "Brexit" foi levado a cabo vai ficar claro. E que tudo isto – "Brexit", incluído – poderia ter sido evitado, se ao menos se se tivesse atendido às preocupações das pessoas em devido tempo.

As consequências do "Brexit" são ainda mais difíceis de antever. Se tudo o que puder correr mal, acabe mesmo por correr mal, poucas coisas podem revelar-se piores para a Europa e Portugal a médio e a longo-prazo. A possibilidade de termos os Troubles de volta, os Troubles entre republicanos e unionistas que ceifaram 3500 vidas num território menor do que a cidade de Lisboa, é tão real quanto preocupante. Sobretudo no cenário da reintrodução de uma fronteira com postos alfandegários, torres de vigia e um muro com arame farpado a separar a República da Irlanda, país-membro da União Europeia, da Irlanda do Norte, um dos territórios que constituem o Reino Unido. Não nos esqueçamos que os primeiros tiros dos republicanos tiveram como alvo precisamente postos alfandegários ingleses. E o que dizer do projeto europeu? Um Parlamento Europeu que a partir de julho deste ano vai deixar de contar com a presença dos 73 deputados ingleses vai ser necessariamente um órgão menos diverso e plural. De igual forma, uma Comissão sem comissários ingleses vai ser uma Comissão em que haverá menos capacidade de oposição às vozes de alemães e franceses.

Para os portugueses, em Portugal ou no estrangeiro, é evidente que o "Brexit" não traz nada de bom. A única dúvida é a extensão e profundidade dos estragos. A perda de um mercado de exportação sem entraves alfandegários, a acrescida dificuldade de circulação de pessoas, bens e capital entre os dois países, e a mais do que provável diminuição do número de visitantes do Reino Unido ao nosso país, são problemas que não precisávamos com que ter que lidar. Mas não há alternativa. O "Brexit" – que não significa "Brexit", mas o resultado de anos de decisões políticas – vai mesmo acontecer. O que podemos fazer é tentar evitar repetir os erros que levaram os ingleses a saírem da União Europeia. Em vez de encontrar bodes expiatórios para os problemas do nosso país, há que tentar resolvê-los assumindo a responsabilidade por isso. De preferência, em coordenação com os restantes países-membros. E com todos os restantes países com os quais partilhamos uma história e desejamos continuar a construir um futuro. Entre estes, apesar do "Brexit", estará sempre o nosso mais velho aliado: o Reino Unido.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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