Violência doméstica: o último reduto do agressor

O tribunal de família tem que deixar de ser uma camara de tortura para as mulheres e crianças vítimas de violência. Sabemos o que fazer. Quantas mais têm que morrer?

Em janeiro deste ano foram assassinadas em Portugal oito mulheres em contexto de violência doméstica, sendo já dez as mulheres assassinadas em 2019. Este número choca brutalmente e demonstra uma evolução dramática no número de femicídos em Portugal. Para transmitir a dimensão desta tragédia, oito é precisamente o mesmo número de mulheres assassinadas em Espanha, durante o mês de janeiro último. Como é que Portugal, com dez milhões de habitantes, tem números de femicídios idênticos a Espanha, um país com uma população de 47 milhões?

As mulheres são na sua enorme maioria mortas em casa, naquele que devia ser o seu porto seguro mas que se transforma em cena do crime.

A violência doméstica e o femicídio impactam todo o contexto familiar e muito particularmente as crianças. Sabemos que a grande maioria das mulheres vítimas que procuram ajuda têm filhos. Em 2017 existiram 27.000 participações de violência doméstica e em 35% dos casos as ocorrências foram presenciadas por menores [1]. Três mulheres mortas por mês em média nos últimos 13 anos. Três filhas/os ficam órfãos de mãe por mês em média nos últimos 13 anos [2].

A violência doméstica é sobretudo uma questão de poder e controlo do agressor sobre a vítima. O momento do divórcio e/ou da denúncia, com a vítima a tentar libertar-se do poder do agressor, é aquele em que o risco é maior.

Em 21 de janeiro de 2019, o comité de peritos do Conselho da Europa GREVIO publicou o relatório de avaliação de Portugal sobre a aplicação da Convenção de Istambul (Convenção do Conselho da Europa para a eliminação da violência doméstica e de género). É referido no relatório (facto também identificado em inúmeros estudos internacionais) que os agressores utilizam os processos de responsabilidades parentais para continuar o controlo e agressão, dado que as crianças são muitas vezes o último ponto de ligação entre agressor e vítima. O tribunal de família é muitas vezes o último reduto do agressor. Como diz o procurador jubilado Rui do Carmo, coordenador da Equipa de Análise Retrospetiva de Homicídio em Violência Doméstica, o país tem de ser capaz de aplicar "o que está previsto na lei da violência doméstica".

As recomendações do Conselho da Europa são claras:

164. O GREVIO insta as autoridades portuguesas a tomarem as medidas necessárias, incluindo alterações legislativas, para garantir que os tribunais de família considerem devidamente todas as questões relacionadas com a violência contra as mulheres ao determinar os direitos de guarda e de visita bem como devem avaliar se tal violência justifica os direitos.

219. O GREVIO insta as autoridades portuguesas a tomarem medidas, incluindo alterações legislativas, para garantir a disponibilidade e a aplicação eficaz das ordens de restrição e/ou de proteção. Deveria ser possível incluir crianças na mesma ordem de proteção das suas mães, sejam as crianças vítimas diretas ou indiretas, já que elas mesmas experienciaram a violência ou por testemunho ou na própria pele.

O tribunal de família tem que deixar de ser uma camara de tortura para as mulheres e crianças vítimas de violência. Sabemos o que fazer. Quantas mais têm que morrer?

[1] Femicídio, UMAR, 2018
[2] Relatório anual de monitorização, MAI, dezembro 2017

A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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